Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

domingo, 30 de outubro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (60)


Continuação de tudo


O Tempo é, de todos os créditos, o mais cruel. À semelhança do que sucede com os vulgares cartões de plástico, pagamos com juros quanto pedimos emprestado; mas a moeda do Tempo é a nossa própria vida.
Estimo diariamente a minha velhice: de manhã, à hora do escanhoamento burguês, o espelho lembra-me francamente a idade; ao descer ou subir as escadas do prédio, há uma ou outra articulação que não me dói (mas não sei qual é); as próprias notícias da rádio esbarram na minha existência calejada e raramente me parecem novidades.

Vale-nos que o envelhecimento é, em geral, um processo lento e subtil. As mudanças só se percebem bem quando, por acaso, nos cruzamos com uma imagem nossa de há vinte anos e mal reconhecemos, naquela exuberante juventude, o outro que fomos. Sucede algo parecido, embora num plano inverso, quando nos encontramos com gente essencial, após hiato de uma década ou pior: a mais voluptuosa mulher da nossa adolescência, só uns cinco anos mais velha que nós, deveio uma avó enorme, distraída e amarga, com ódio aos imigrantes, aos “jovens de hoje” e à celulite assassina; um dos ídolos futebolísticos dessa era (que talvez tenha seduzido aquela deusa dos nossos catorze anos) tornou-se alcoólico, perdeu cabelo e fortuna, divorciou-se, teve problemas com a polícia – e vive agora num lar, a uns cinquenta quilómetros do Estádio onde brilhou tanto.
Nada podemos contra o Tempo, na verdade. Excepto, digo eu, viver. Conto-vos à laia de exemplar demonstração deste apotegma, o que me sucedeu na última sexta-feira, à noite, na Lousã. Por iniciativa de dois Amigos, uns quarenta ex-jogadores do Atlético Mirandense reuniram-se para homenagear um homem que, na segunda metade do século XX, foi presidente daquele cube. À volta do senhor Aires, que fez oitenta anos nesse dia vinte e um de Outubro, convivemos alegremente por quatro horas ou mais. Revivemos episódios trágicos ou hilariantes; soubemos de doenças, golpes de sorte, emigrações (para o estrangeiro e para a eternidade), filhos & netos, divórcios; partilhámos alguns sonhos, indignações, amarguras. Dou por mim a olhar melancolicamente à volta - como se fosse, por um instante, o cameraman do filme O Caçador (de Michael Cimino, 1978): em slow motion, com fundo musical de Stanley Myers, reparo nas barrigas, nas carecas, nas cãs, nas rugas, na reumática lentidão de alguns gestos. E, de repente, já em velocidade normal, sou parte da acção, entro no ruído amável das gargalhadas, na ressuscitada juventude dos meus companheiros. Um deles desafia-me, pela enésima vez, a pôr em livro as nossas histórias do futebol. Outro corrobora-o gravemente, como num aviso:
- O livro, sim, para as coisas ficarem registadas. Porque tudo passa, Joaquim Jorge!
Invadido por uma momentânea (e estranha) felicidade, eu corrijo-o:
- Continua. Tudo continua, pá.

Coimbra, 22 de Outubro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 27-10-2016.]

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