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Número de Ondas

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (61)

João Lobo Antunes (De profundis)

A morte do médico-investigador-cientista-escritor João Lobo Antunes foi dignamente assinalada pelos média portugueses. Li e ouvi testemunhos de muita gente, a uma voz lamentando a perda do homem-amigo-cidadão. Desse coro resulta a imagem de um Português consensual, estimado e admirado para lá do ruído político-partidário, a salvo da espuma medíocre das tricas e invejas da vidinha. 
Eu gratamente contribuo para esta unanimidade invulgar- Habituei-me a reconhecer a elegância deste compatriota sereno, culto, viajado. Retive, entre discursos, entrevistas e textos de opinião, um prefácio que escreveu para o livro De Profundis, Valsa Lenta, de José Cardoso Pires. Sublinhava, nessa espécie de ensaio, o valor literário e científico daquela obra do escritor consagrado e, por acidente do destino, seu doente. A Valsa Lenta relata, de forma tão precisa que dói ao ler, a doença do autor de O Delfim, o qual subitamente se perdeu de si, tornando-se incapaz de reconhecer pessoas, coisas e objectos, de verbalizar pensamentos ou emoções, de comunicar. (A este fenómeno, os cientistas chamam, salvo erro, “afasia”.) 
Lobo Antunes, para além da estética fruição do testemunho de Cardoso Pires (que entretanto ainda teve tempo de reaprender a linguagem e pôde, assim, explicar, na sua tão limpa prosa, aquela sua saga radical), deu-se conta do tesouro médico-científico da obra: era, como bem esclareceu, uma maneira de leigos e especialistas visitarem, guiados pela luz do escritor, o corredor misterioso e tenebroso da consciência, da profunda Vida. 
Mas o que eu queria sublinhar, acima de tudo, na revisitação deste elogio nacional a João Lobo Antunes, era a gratidão de tantos cidadãos pelo (seu) médico. Desde menino que vejo, nos profissionais de saúde, uma espécie de anjos em missão terrena. Entregamos-lhes a nossa vida e inteiramente confiamos nos seus conhecimentos e nas suas capacidades (como, em devido tempo, fizemos com os nossos pais). Se a esta competência científico-profissional calha acrescentar-se a simpatia, a generosidade, o humanismo – que remédio senão vê-los como seres verdadeiramente maiores e exemplares, merecedores de todos os encómios e agradecimentos? 
Era para vos falar de uma médica bruta e irresponsável, uma avantesma com quem me cruzei há cerca de um ano, num centro de saúde do interior. Escuso de o fazer, assim ganhando - eu, a crónica e os leitores - em matéria de higiene e de bem-estar: bastemo-nos desta ideia de que o pior inimigo de um bom médico (ou de um grande médico, como o Dr. João Lobo Antunes) é um qualquer colega seu sem qualidades profissionais e humanas.
Naturalmente, isto também vale para advogados, professores, canalizadores, engenheiros, caixeiros, fiscais da câmara, políticos, jornalistas, carteiros, mecânicos, militares, etc. Os exemplos ajudam-nos a pôr tudo em perspectiva, não é verdade?


Coimbra, 30 de Outubro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 03-11-2016.]

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