Bússola do Muito Mar

Endereço para achamento

jjorgecarvalho@hotmail.com

Número de Ondas

terça-feira, 15 de novembro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (62)


Ir à bola com Assis Pacheco
 Esta crónica começa com um fait-divers: houve um polaco que, quando médicos e família já desesperavam, saiu do coma. O que alegadamente o devolveu ao mundo foram os golos de Cristiano Ronaldo, relatados por (creio) um locutor de Varsóvia.
Esta notícia contraria o que, nos anos 70 do século XX, era habitual ouvirmos sobre o futebol. Isto: que, como a religião e o fado, a bola servia para adormecer o povo, distraí-lo das questões verdadeiramente importantes.
Custou-me muito, na primeira adolescência, casar a paixão pelo futebol com as minhas convicções antifascistas. O meu vizinho Chico, que era (e é) benfiquista fervoroso, andou uns meses a falar-me nos três efes do fascismo – Fátima, Fado, Futebol. Já o meu Pai, pouco dado a fundamentalismos e com o gozo de, enquanto sportinguista, o contrariar, dizia-lhe que havia outro efe ainda mais relevante, fonte de prazer egoísta e garante da demografia pátria. Riam-se os dois e talvez eu, por instantes, julgasse que aludiam à palavra Felicidade.
De qualquer modo, sempre achei que o meu amado futebol valia muito mais que aquele labelo circunstancial. Nem de propósito, tive a oportunidade de reler, no passado (saudoso) Agosto, um livrinho de Fernando Assis Pacheco, intitulado Memórias de um craque. Trata-se de um conjunto de textos que aquele jornalista e escritor escreveu para o Record, há uns 40 anos, e que eu me lembro de, in illo tempore, mui gratamente devorar. Num dos capítulos-crónicas, ele lembra a saga da Académica de Coimbra até à final da taça, no Jamor, no ano heróico de 1969. Solidários com os colegas da universidade, os jogadores e os adeptos da Briosa ensaiaram, à época, uma espécie de 25 de Abril temporão, exemplar grito pela liberdade, pela educação e pela justiça. Ora, tal como na historieta do polaco ressuscitado, aqui o futebol serviu, não de manhoso embalo para o esquecimento, mas de despertador. No caso daqueles verdes anos coimbrões, de despertador – atenção ao adjectivo - ético.
Nota final: Fernando Assis Pacheco era, ao contrário de quem vo-lo recorda, adepto da Académica de Coimbra (eu sou do União) e do Benfica (eu sou do Sporting). Mas amava, semelhantemente a este pobre escriba, a futebol, a liberdade, os amigos e a língua portuguesa.


Vila Real, 06 de Novembro de 2016.
 Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 1º-11-2016.]

Sem comentários: