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Número de Ondas

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (67)



Conhecimento de causa(s)
 Em Retrato do artista enquanto jovem, James Joyce apresenta-se-nos como estudante de um Colégio de Jesuítas, o melhor aluno da sua geração, que obtém – ao longo dos anos de estudo – as mais altas classificações e os mais sentidos louvores de seus mestres e condiscípulos. Chegado o momento da (mui provável) ordenação, comentava-se: que extraordinária figura da Igreja deviria este rapaz, tão profundamente versado já nos segredos da Fé! Que carreira decerto o esperava! Aconteceu, contudo, que o jovem, em vez de confirmar as expectativas à sua volta, disse que não queria ser ordenado. Pior: revelou não acreditar naquilo que a Igreja postulava (conteúdo, forma, rituais). Mas então – contrapunham desconcertadamente os professores, os colegas, os familiares – para que fora tanto estudo e dedicação, e de que servira obter tão elevadas classificações nas múltiplas provas realizadas? O rapaz respondeu-lhes que estudara muito bem tudo quanto era e significava a Igreja para perceber bem o que era e significava a Igreja; que chegara a hora de, com a autoridade de quem comprovadamente sabia do assunto, lhes dizer que não acreditava nos pressupostos, na lógica e nos objectivos da instituição milenar. E, já agora, que ele não tinha fé.
Eu conheci, nos tempos da faculdade, um moço (salvo erro, de Geografia) que fez o exigentíssimo curso dos comandos. Fê-lo, ainda por cima, como voluntário. Passou nos testes preliminares, fez a instrução toda, ultrapassou as variegadíssimas dificuldades de que, só de ouvir dizer, suspeitamos, venceu o sono, a fome, a sede, a fadiga extrema e os fantasmas mais arrepiantes da mente humana. Quando chegou o dia, normalmente glorioso, de receber a boina vermelha, símbolo consabido da condição – adquirida, plena, conquistada – de comando, um graduado fez-lhe a pergunta protocolar (gloso-a de cor): “Aceitas a boina?” Ele respondeu, com a maior desfaçatez, que não. Mas então – contrapuseram oficiais e sargentos, camaradas de curso, familiares, amigos – para que fora e servira tanto esforço e tanta dedicação, se agora recusava os justos louros da cumprida empresa? O jovem disse-lhes, com candura insuportável: “Queria ver se era capaz, mas percebi que isto, para mim, não tem lógica, razão de ser, valor. Não quero.”
Há menos de uma semana, reencontrei um companheiro antigo, dos tempos do futebol coimbrinha. A gente conhecia-o pelo fervor com que militava numa certa juventude partidária: sabia tudo sobre datas de congressos e convenções, eleições, listas de candidatos a isto e àquilo do partido, seus concorrentes eventuais à presidência da jota, etc. Dizíamos, mais com amizade do que com ironia, que ele ia longe. Ele não foi longe, politicamente; mas licenciou-se, tem um emprego agradável, mulher, filhos, corre no Choupal com o cão e ainda tem os pais vivos. Diz-se feliz e assegura que aquilo das jotas é uma ilusão e uma falsidade (ilusão e falsidade juvenis, treino para a ilusão e falsidade adultas). Não me deixa aprofundar as causas do desencanto e do asco: “Eu sei do que falo, Quim!”
E eu, caros leitores, vou sabendo um bocadinho do que escrevo.
Coimbra, 15 de Dezembro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 17-12-2016.]

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