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Número de Ondas

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (65)




Criadores, criaturas e criados
 
Certa figura pública (aliás, certo figurão com grande notoriedade mediática) terá publicado – dizia-se, diz-se – livros cuja autoria real coube a outra pessoa. A ser verdade, o episódio acrescenta à criatura objectivas razões para a nossa repulsa e o nosso nojo moral. Com efeito, ter um livro publicado que, afinal, não escrevemos, para além do óbvio ridículo, é um sintoma de profundíssima patologia: significa o absoluto desprezo pela verdade e, em particular, pela ideia de talento. O medíocre, incapaz de criar, compra e exibe como sua a arte alheia. Que fenómenos haverá nas catacumbas da consciência do vigarista, de cada vez que alguém lhe dá palmadinhas nas costas e o felicita pela “sua” obra?
O pior dos cenários é o falso autor desvalorizar esses quaisquer rebates de consciência que, numa pessoa normal, decerto haveria. Os remorsos, na perspectiva dos cínicos incuráveis, são manifestações de fraqueza. Discípulos de Maquiavel, recusam-se a ver imoralidade no que fazem e são perigosos, naturalmente, pois a amoralidade é, a par dos fundamentalismos mais primários, a pior ameaça dos nossos dias.
O caso de quem vende o seu talento académico-literário, abdicando da paternidade oficial do trabalho realizado, é igualmente merecedor de reflexão. Será que todo o dinheiro do mundo compensa a frustração (concomitante ou deveniente) de ver outrem a colher os louros do nosso esforço? Na verdade, creio que a situação é ainda mais hedionda: apetece-me comparar esta gente aos pais que vendem os filhos. Talvez haja neste universo misterioso dos ghost writers, quando vistos à mesma luz dos pseudo-escritores, uma simétrica amoralidade. (Ou então, na mais mirabolante e bondosa das hipóteses, uma santíssima abdicação da ribalta.)
Se, por hipótese, um grande escritor - amado e consagrado escritor - me viesse pedir que lhe vendesse (a preço de ouro) um simples poema da minha autoria, saberia nesse instante que ele não era, de facto, grande, nem amável, nem digno de sagração. E eu ficaria com o meu poema. Sem o seu dinheiro. Essencialmente rico, portanto.
 
Vila Real, 25 de Novembro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 01-11-2016.]

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