Bússola do Muito Mar

Endereço para achamento

jjorgecarvalho@hotmail.com

Número de Ondas

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (64)




Dinis para o povo

Ando, desde Junho do corrente ano, a divulgar o meu livro Júlio Dinis – As Pupilas do senhor escritor, versão (mais elegante) de um trabalho académico sobre o autor de A Morgadinha dos Canaviais.
Comigo, já tive amigos e conhecidos em Ribeira de Pena, Coimbra, Ovar e Cabeceiras de Basto. Em cada apresentação, tenho tentado explicar o meu amor pela literatura e, em concomitância ilustrativa, o enlevo provocado por Júlio Dinis a um menino de dez anos, sedento de histórias (sedento de mundo) e já irremediavelmente apaixonado por esse objecto para sempre extraordinário – o livro.
Nestas ocasiões, tenho confessado (sem orgulho no relato feito) que, pouco depois da conclusão do ensino primário, roubei um exemplar de As Pupilas do Senhor Reitor, retirando-o veladamente de um escaparate. O crime ocorreu em plena baixa coimbrã, a meio da manhã, junto ao quiosque onde minha Mãe comprava a Crónica Feminina: usando como luva o jornal A Bola (à época, um trissemanário gigantesco em tamanho e em qualidade literária), libertei o romance da mola aprisionadora e trouxe-o entre as notícias do campeonato de futebol de 1973. Perante o facto consumado (roubo e vaidade desavergonhada do relato), a minha Mãe pregou-me uma bofetada sonora e garantiu-me que, na próxima oportunidade, devolveria o livro ao dono. Nunca se cumpriu essa promessa. Mas eu formei-me em Letras, fiz pós-graduações, mestrado e doutoramento – e defendi, em Julho de 2011, uma tese intitulada Acção, Cenas e Personagens na Narrativa Dinisiana – As Pupilas do Senhor Escritor. Acreditei (acredito) que assim paguei a dívida à minha progenitora (não, hélas, a que eternamente me ficou para com o dono do quiosque).
Poupo os meus leitores à revisitação do conteúdo essencial da dissertação, mas trago para a crónica um sumário fundamental: que há no fenómeno da literatura (e, em particular, no da narrativa) real interesse e real utilidade; que a literatura nos ajuda a organizar/verbalizar/tornar visível - sob a forma de palavras, i.e., de vida(s) – o que, de outro modo, seria menos claro, menos gratificante, menos lindo. E ainda: que, na escolha do cânone escolar para o ensino básico e secundário (selecção de autores e obras a estudar, no contexto da educação literária e no da aquisição de hábitos e gosto de leitura), nem sempre as eminências & reverências & excelências da universidade têm razão. Há alguns nomes que, não obstante o relativo desprezo a que são votados, são mais indicados pela sua leveza, pela sua graça, pela sua simplicidade, pela sua amabilidade, pela sua eficácia narrativa. [Não confundir, por favor, leveza, graça, simplicidade, amabilidade e eficácia com vulgaridade ou banalidade!]
Um Amigo, que fez o favor de apresentar o meu livro em Ovar, usou uma forma lapidar para a enunciação desta acessibilidade ideológico-fruitiva da obra dinisiana – disse que Júlio Dinis escreveu “para o povo”.
O povo leitor somos (todos) nós, os mais ou os menos instruídos, os dotados de maior ou de menor conhecimento vocabular e sintáctico. E isto de se amar a literatura à roda de um mesmo autor, cujo génio foi (é), por natureza, avesso a rótulos cómodos ou fáceis (um autor que apenas quis contar histórias, de forma simples, elegante e clara), não será coisa de somenos.
Eu tinha dez anos e vi aquele livro de capa azul no escaparate de um quiosque, preso por uma mola. Libertei-o da prisão e trouxe-o comigo para sempre. Tirando o pormenor – lamentável - do roubo, foi (sei-o hoje) um acto de liberdade e de amor.
 
Coimbra, 20 de Novembro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 24-11-2016.]

Sem comentários: