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Número de Ondas

terça-feira, 9 de maio de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (86)



 Saudades de Carlos Pinhão

À semelhança do que ocorre, hoje, com a maioria dos jornais, A Bola está longe de ser aquele espaço de excelência jornalística e, sobretudo, literária que os leitores do século XX testemunharam e aproveitaram. Sinal dos tempos, diz-se. Mau sinal, digo eu.
Entre os muitos notáveis daquela prosa de primeira água que havia n’A Bola, destaco três: Carlos Miranda, que está para Joaquim Agostinho como Luís de Camões para Vasco da Gama; Vítor Santos, cujos textos eram antologias de saber e ética; e Carlos Pinhão (o meu preferido), dono de uma escrita luminosa e cheia de graça. Tive a felicidade de conhecer pessoalmente este último. Nos meus primeiros anos de professor, ousei fotocopiar crónicas suas e dá-las a degustar aos alunos, com óbvio benefício deles e meu. Na prosa de Carlos Pinhão, havia um raciocínio claro e fino, acompanhado quase sempre de certo sorriso cúmplice e divertido, que os leitores mais adivinhavam do que viam.
Aí por 1990, quando leccionava no Paião (vila contígua à majestosa Figueira da Foz), tomei em mãos o projecto de trazer à escola este senhor – para que os alunos o conhecessem, quer na qualidade de repórter e cronista, quer na qualidade de escritor. Tinha lido já, por essa altura, aos meninos e às meninas do 7.º ano, o seu livro Era uma vez um coelho francês, espécie de alegoria divertida e eficaz contra o racismo, e ocorrera-me a ideia de fazer dessa narrativa um textinho para teatro. “Não era engraçado”, perguntei eu à turma, “representarmos esta peça com o autor da história no público?” E a proposta foi aprovada por trinta sins a zero.
Escrevi para A Bola, o Carlos Pinhão respondeu-me, combinámos conversa telefónica. Lembro-me da primeira vez em que ouvi a sua voz franca e meio gaguejada: “Boa noite, professor. Fez bem em telefonar só a seguir à novela…” Um mês depois, se bem recordo, viajou até Coimbra, de comboio, e aí o recebi, acompanhado da sua amabilíssima esposa. Instalei-os num hotel da cidade e, no dia seguinte, manhã cedo, levei-os no meu carro até à escola. O nosso programa dividia-se em duas partes: de manhã, o convidado falaria aos alunos do 8.º e 9.º anos sobre a importância do jornalismo no mundo moderno (havia a primeira invasão do Iraque como pano de fundo); de tarde, assistiria à representação da peça “Era uma vez um coelho francês” e falaria, depois, aos alunos do 7.º ano sobre a sua obra literária, tendencialmente dirigida ao público infantil e juvenil.
A visita foi um imenso sucesso, e o prazer do Carlos Pinhão não foi o menor dos motivos para a minha tão grande felicidade de então. Recordo em especial aquela tarde em que o vi sorrir perante o seu coelho francês adaptado ao teatro; a emoção da sua esposa por ouvir, no final da peça, a canção “Amigo”, do amado Zeca Afonso; as suas respostas certeiras e geralmente divertidas às perguntas (preparadas ou espontâneas) dos alunos – por exemplo, quando o interrogaram sobre o melhor livro escrito por si: “Ó pá, tu nunca perguntes a um pai qual é o seu filho favorito!
Impressionou-me igualmente o aspecto de namorados que ele e a esposa mantinham, apesar da idade já madura de ambos. Ainda hoje retenho, até como referência para a minha própria vida familiar, aquela cumplicidade especial, aquela harmonia de gestos e de palavras entre os dois, aquela serenidade e doçura que deles emanava. A propósito: na viagem entre Coimbra e o Paião, o Carlos Pinhão pediu-me para deixar a mulher na Figueira da Foz até à hora do almoço, pois ela – dizia – “já estava farta de o ouvir dizer sempre as mesmas coisas”. Eu preparava-me para anuir ao pedido-ordem do convidado ilustre, mas a sua companheira de tantos anos saiu-se com esta: “Ó Carlos, a mim parece-me que é sempre a primeira vez que te ouço!” E ele, rindo-se, evidentemente feliz: “Já viu, professor? Tenho ou não tenho muita sorte?” A sorte, pensei eu, foi terem-se os dois conhecido (e haver gente tão bonita para grato consumo do mundo).
Que pena tive, senhores, anos mais tarde, quando soube do falecimento do senhor Carlos Pinhão, esse tão grande nome do jornalismo limpo, ledo e lindo que já houve em Portugal.

Vila Real, 28 de Abril de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 04 de Maio de 2017.]

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