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Número de Ondas

quinta-feira, 20 de abril de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (84)


Galafura, Dublin, Vidago & Nós
 
Recebi, ao longo da última semana, a visita de um cunhado madeirense. Servi-lhe de guia turístico, tanto quanto pude e soube. Ele ouvira-me, certo Verão, durante uma caminhada pela Ponta de S. Lourenço, para lá do Caniçal (na sua Madeira), comparar a beleza da paisagem com a espantosa vista de S. Leonardo de Galafura (na região de Trás-os-Montes) – e confessou-me o seu interesse em conhecer esse lugar, já tão celebrado, muito antes de mim, por Miguel Torga.
Lá estivemos, pois. À maravilhosa imagem do “navio de penedos”, como genialmente o descreveu o poeta nascido em S. Martinho de Anta, acrescentei a admiração silente e comovida do meu amigo Alberto Ornelas. Torga chamou a este espaço, no Diário IX, um “poema geológico” (expressão que, Deus me perdoe, adoraria ter sido eu a inventar).
Na verdade, há lugares que nunca mais são os mesmos depois de terem sido ditos por artistas (“ditos” significa aqui, naturalmente, descritos, representados, recriados – e o verbo “dizer” compreende não apenas a literatura, mas também a pintura, a escultura, a música, etc.).
A identidade de Galafura é hoje inseparável do verbo torguiano. Como, aliás, sucede com Trás-os-Montes em geral. Algo semelhante acontece com outros escritores & outros lugares: Manuel da Fonseca & o Alentejo; Ferreira de Castro & as Beiras; Eça, Pessoa, Saramago, Cesário & Lisboa; Vergílio Ferreira & Évora; Carlos de Oliveira e a Gândara; Garrett & Santarém; Trindade Coelho, Assis Pacheco, Daniel Abrunheiro & Coimbra; Júlio Dinis & o Porto; James Joyce & Dublin; etc.
A nossa percepção dos lugares fica para sempre condicionada (quero dizer: enriquecida) pela percepção-enunciação dos autores amados. Ou seja, os lugares ganham (mais) sentido, lógica, profundidade, vida. Porque a arte, meus senhores, ensina a ver. No mínimo, a ver melhor.
Cruza-se quanto vos digo com a exibição, na RTP, de uma excelentíssima série intitulada Vidago Palace (com realização de Henrique Oliveira). Há 21 anos que estou a trabalhar no Norte de Portugal, na fronteira (imaginária) entre o Minho e Trás-os-Montes. Já passei muitas vezes por Vidago, já lá tirei fotografias e já especulei mentalmente sobre o bulício mundanal de outrora, tão distinto da imagem de abandono que, há pouco tempo, feria os olhares e os corações visitantes. Em Vidago Palace, o velho hotel ressuscita – e esse milagre acaba por nos recordar a própria História, sob a forma de humanidade-em-movimento (um festival de amores e desilusões, de ideias e de combates, de rotinas e de assombros, de estar e de devir). Temos o privilégio, enquanto espectadores, de testemunhar o que de nobre e de miserável é capaz de fazer a raça humana em seu mui sanguíneo ofício de existir.
Em suma, a vida compreende-se – sobretudo - vivendo. Mas muito se ganha, ó cúmplices leitores, com o trabalho dos artistas, que pegam na realidade e a reconfiguram esteticamente (e/ou a reequacionam eticamente). Tudo para que possamos todos, até os mais distraídos, saber de que tesouro se fala quando se fala de viver.
 
Coimbra, 12 de Abril de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 20-04-2017.]

 

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