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Número de Ondas

domingo, 9 de abril de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (82)


Coisas de aqui & de toda a parte

Revi, a convite de amigos, Histórias da idade do ouro, um filme dirigido por três realizadores romenos (Cristian Mungiu, Razvan Marculescu, Ioana Uricaru), datado já de 2007. O filme (que foi muito apreciado pela crítica internacional) nasce do argumento de Cristian Mungiu, que se propôs reunir várias histórias numa única narrativa. A poética do variegado discurso assenta num desiderato comum: testemunhar, de forma tragicómica, o País de Ceaucescu, que se autoproclamava “uma época de ouro” e tentava disfarçar, com grandiloquente propaganda, uma ditadura feroz e omnivigilante. 
A graça maior, em minha opinião, está no facto de os romenos comuns, em modo de sobrevivência, continuarem a fazer pela vida, sem choros ou dramas, não apenas fugindo quotidianamente à violência do regime, mas aproveitando em seu benefício, sempre que possível, uma certa cegueira acrítica e obediente das autoridade oficiais. Contexto óbvio: a opulência de discursos e de gestos dos governantes contrasta com a miséria da população; o fogo-de-artifício da cartilha comunista, gritada aos quatro ventos, esbarra na modéstia, na desconfiança ou na troça do povo simples.
Ficam na memória os espertalhões que, fingindo-se inspectores da Saúde Pública do Estado, vão às casas de incautos e “engarrafam o ar doméstico”, para – garantem – controlar a qualidade ambiental da cidade. Percebemos depois que este estratagema serve para recolher garrafas de vidro (oferecidas pelos inquilinos de cada prédio visitado) e com elas fazer dinheiro.
Ou os funcionários do Estado que - bem bebidos e bem comidos - entram numa roda gigante (género de carrossel aéreo, daqueles que se vêem nas feiras) e se esquecem, naquela euforia patriótica, de deixar alguém no chão para, em tempo oportuno, desligar a máquina. De modo que ficam para ali às voltas, desesperados e ridículos, sem remédio à vista.
Ou o militante que vai ao interior rural e atrasado da Roménia, imbuído do maior fervor partidário e nacionalista, querendo obrigar os residentes – velhos e novos – a frequentar a escola, com promessas de alfabetização para os cumpridores e ameaças de castigo para os faltosos. Infelizmente para si, não será possível ultrapassar a geral resistência (teimosa e só na aparência ingénua) dos putativos beneficiários.
Ou ainda a história de um director de jornal que obriga os seus jornalistas a uma ginástica editorial, no sentido de disfarçar, a cada fotografia oficial, o défice de altura de Ceaucescu, nomeadamente através da colocação – artificiosa - de um chapéu na cabeça do ditador. Problema gerador de angústia oficial e de riso popular: sem que a redacção se desse conta, o presidente ficaria, na foto publicada, com um chapéu (inventado) na sua cabeça e outro (verdadeiro) na sua mão.
Visto por portugueses com mais de 50 anos, aquele filme é também um documento sobre Portugal. A ditadura, no nosso caso, tinha outras inspirações e outros inimigos públicos, é verdade. Mas reconhecemos a mesma modéstia de viver, a mesma rotina triste e silente das vidas (mal) remediadas, o medo nos mais simples gestos, a prepotência e a arrogância da autoridade – e também a revolta picaresca da arraia-miúda, que vai fintando a brutidade com truques de génio.
Um dos mais impressionantes milagres da arte é mesmo este de o local devir esteticamente toda a parte. E eu voltei a lembrar-me da lapidar definição que Torga inventou para a ideia da universalidade da arte, em texto apresentado numa sua conferência no Brasil: “O universal é o local sem muros.”
Vila Real, 01 de Abril de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 06-05-2017.]

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