Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sexta-feira, 31 de março de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (81)


 
Viver cansa
 
Há uns anos, num sarau poético, a minha Filha disse um poema de José Gomes Ferreira (colhido no volume Poeta Militante). O poema que leu foi “Viver sempre também cansa”. Havia ali uma graça e uma profundidade que, tempo adiante, não mais deixou de me desafiar e encantar. O sujeito poético, partindo da premissa (queixosa) de o mundo se repetir e de o aborrecer, interroga-se: «Pois não era mais humano / morrer por um bocadinho, / de vez em quando, / e recomeçar depois, achando tudo mais novo?». E acrescenta: «Quando viessem perguntar por mim, / havias de dizer com teu sorriso / onde arde um coração em melodia: / “Matou-se esta manhã. / Agora não o vou ressuscitar por uma bagatela.”».
Também a mim aconteceu já esta vontade de me suicidar temporariamente (sublinho: temporariamente – porque a morte definitiva sempre me pareceu estúpida e insuportável). E não sendo possível a liberdade de morrer-sem-morrer-para-sempre, tenho percebido os méritos do cumprimento disciplinado e regular de uma certa solidão terapêutica. Não falo, note-se, de isolamento desistente ou de radical misantropia. Refiro-me ao encontro do eu consigo próprio. À auto-instituição de um tempo para, de modo sereno e lúcido, pensar (n)a vida, muito fora da barulheira obsessionante do mundo - ou simplesmente de um tempo para pensar em nada. 
Lembro-me de, aí por 1993, ter passado por Óbidos, na companhia de um grupo de teatro numeroso e esfuziante. Não sei explicar porquê, mas senti-me, a dada altura, ansioso, desejoso de sair dali. Não houvera qualquer motivo objetivo para a neura (discussões, conflitos, ofensas, medos ou falhas de saúde). Sei que, de maneira disfarçada, como quem prevarica conscientemente, me afastei dos companheiros de viagem e andei pelas ruas da vila à procura de nem eu sabia quê. Até encontrar uma pequena igreja e nela entrar. Estava quase deserta. Vi apenas uma senhora, junto ao altar, que varria o chão. Sentei-me num banco, logo à entrada, e pus-me a pensar em nada. Uma paz (religiosa, dir-se-ia) caiu sobre o que eu era – e por uma boa meia hora descansei. Não houve rezas, vozes saindo da santaria de barro ou da cruz central. Nem coros celestiais de anjos. Nem luzes piscando nos painéis da parede. Houve só o silêncio e o recolhimento inteiro. A paz. Eu ali escondido do mundo, olhando o tecto alto da igreja. O sussurro da vassoura sobre a laje. Aquilo não foi, digo-vos, senão uma espécie de sono-sonho de olhos abertos, a que se seguiu a continuação da vida como ela existia até ao início do presente parágrafo.
Continuo a praticar esta ginástica de morrer de vez em quando. Preciso de morrer de vez em quando para viver bem. Não tem de ser no interior de igrejas, naturalmente. Pode morrer-se muito bem, por horas completas, num Café, num jardim, em nossa casa. Ou dentro de um livro, de um filme, de uma música.
Ainda por cima, é muito agradável a ressurreição deveniente. Acontece-me até, embora seja raro, ainda não ter morrido e já estar mortinho por ressuscitar.
 
Coimbra, 25 de Março de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 30-03-2017.]

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