Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

domingo, 26 de março de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (80)


 
Relógio de pulso
 
A minha primeira crónica da Primavera de 2017 apareceu-me ao entardecer. Vi-a atravessar a rua, sem ainda a reconhecer, entrar na pastelaria e vir até à mesa do meu chá vespertino. Cumprimentou-me. Hesitei. Desbloqueou-me a memória dizendo o seu nome (vamos imaginar que é Florência), e também a turma que, há uns quinze anos, fora sua e minha.
No 5.º e no 6.º ano de escolaridade, ela fora oficialmente uma jovem com NEE (Necessidades Educativas Especiais), tendo direito a tratamento pedagógico diferenciado. Mas a legislação mudou, entretanto, e as suas dificuldades deixaram de ser “suficientes” para a integrar na tal lista de alunos com direito a discriminação positiva. A Escola, à falta de melhor alternativa, optou por recomendar a menina para um CEF (Curso de Educação e Formação).
Fui seu professor de Francês nesse específico contexto. Percebi as evidentes dificuldades da Florência em matéria de aprendizagem dos conceitos mais complexos, de aplicação dos conhecimentos (mal) adquiridos, de autonomia na realização da maioria das tarefas propostas. Mas também se lhe notava, a léguas, a alegria esfusiante de viver, a frescura dos desabafos, a espontaneidade do riso ou da momentânea fúria, a teimosa esperança num futuro radioso.
Certa manhã, eu tentava ensinar a turma a dizer as horas en français. Dei conta do embaraço da Florência desde o início da aula. Tentei, com exemplos repetidos, obter dela uma resposta satisfatória (por mim, claro, mas sobretudo por si). E dela nada, senão um esgar de desespero. A dado momento, após desenhar um relógio no quadro, com os ponteiros a indicar talvez as seis e trinta, desafiei-a a dizer que horas eram em português. Também nesse caso, nada. Pior: passei a notar-lhe nos olhos uma espécie de fúria.
Estás zangada comigo, Florência?”, perguntei. Ela deve ter tido tanta pena de mim que, num murmúrio, decidiu explicar-me o que se passava. E era isto: “Ó sôtor, eu nunca aprendi as horas!
Impedi os risinhos dos outros e assegurei-lhe (com estas ou outras palavras) que era uma honra podermos ensiná-la a ver e a dizer as horas, porque isso nos garantia, na sua história de vida, a inesquecibilidade. E, sim, de modo claro, sereno, paciente, eu e os colegas da Florência ensinámo-la.
Já antes desse dia ela usava relógio no seu pulso fino de menina. Mas que alegria, imagino, deverá ter sido, para si, olhar para os ponteiros correndo no aparelho e dizer aos pais, nessa noite, que horas eram!
Falei com a Florência-mulher por poucos minutos. Ela estava de férias em Portugal até ao final da semana e viera à pastelaria buscar pão. Trazia uma irrequieta criança ao colo. “É teu?”, perguntei. “É. É uma menina. O meu mais velho está em casa da minha sogra.” Depois, disse-me que estava na Suíça com o marido há já oito anos, que já se desenrascava a falar alemão com os clientes do restaurante onde trabalhava, que estava bem, graças a Deus.
Subitamente, olhou para o pulso, fez uma cara meio aflita, meio divertida, e declarou que tinha de se despachar. “O meu marido ficou de me esperar lá em baixo, nas bombas de gasolina. Adeus, sôtor!
Adeus, Florência. Vai à tua vida. Não há tempo a perder.
 
Coimbra, 19 de Março de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 24-03-2017.]

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