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segunda-feira, 6 de março de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (77)


Recado do Céu


A importância do Papa, no contexto político e cultural do planeta, tem variado de acordo com a interpretação que cada sumo pontífice faz do cargo. Na maior parte das vezes, a voz desta eminência católica adapta-se confortavelmente ao statu quo, observando um prudentíssimo respeito (ou temor) pelos estados mais poderosos e pelas instituições mais abastadas. Quando auto-votado à qualidade de peça meramente decorativa, o Papa evita a agitação das águas e goza, em geral, da simpática condescendência ou do asséptico apreço de líderes políticos, empresários milionários e clérigos de carreira.
Sucedeu que, em 2013, subiu à cadeira de Pedro um argentino invulgar, que não abdicou, após a eleição, da sua mais crua e natural humanidade. O mundo dos interesses & protocolos instalados, do verniz hipócrita e da diplomacia cínica vai-se espantando, com frequência, perante atitudes inesperadas de Francisco: umas vezes, trata-se de um impulsivo abraço a um doente ou de um telefonema improvável a uma anónima idosa (de Portugal ou das Américas); outras vezes, a coisa é mais perigosa – e acontecem discursos desempoeirados sobre xenofobia, racismo, pedofilia, luxos obscenos, pena de morte, indiferença perante a fome e a exploração.
O último episódio conhecido deu-se há poucos dias. Soube dele pelo JN (edição de 24-02-2017, página 31). Durante uma missa, a que presidiu no dia 23 de Fevereiro, na sua residência de Casa Santa Marta, o Papa Francisco, à pergunta (retórica) “O que é um escândalo?”, respondeu: “É dizer uma coisa e fazer outra, é a vida dupla. Eu sou muito católico, vou sempre à missa, pertenço a esta ou àquela associação, mas a minha vida não é cristã, não pago com justiça aos meus empregados, aproveito-me das pessoas, faço negócios sujos. [...] Muitos católicos são assim e por isso causam escândalo. [...] Quantas vezes ouvimos, todos nós, no nosso bairro e noutras partes: para ser um católico como esse, o melhor era ser ateu? É esse o escândalo. Destrói-nos, deita-nos por terra.”
A  etimologia ensina-nos que “pontífice” deriva de “ponte” – e a ponte, neste caso, significa o caminho suspenso entre a Terra e o (simbólico) Céu. A esta luz, consola-me pensar no desassossego dos grandes administradores com salários de milhões, dos presidentes amadores de muros e deportações, dos corruptos da justiça, da economia & finanças e do desporto, dos hipócritas em geral, quando ouvem a autoridade de serviço, reportando uma apóstrofe de Deus, dizer-lhes: “Ó gente sem alma e sem escrúpulos, vós não prestais! Nenhum dinheiro, nenhum poder, nenhuma fama vos esconde desta verdade indiscutível e última: nada valeis! Não prestais!
Das palavras de Francisco, mesmo a quem não tem fé, apetece dizer que são santas.

Vila Real, 26 de Fevereiro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 02-03-2017.]

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