Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (76)


Miró à recepção

À ideia de uma visita de estudo, o pavor toma conta de mim. Assusta-me de morte a possibilidade de um acidente, de um desaparecimento, de um rapto envolvendo alunos. Nos piores pesadelos, uma multidão de pais grita-me, em fero uníssono: “Que estava lá você a fazer, seu incompetente?!” (E esta é a versão mais bondosa.)
Mas, na balança da opção certa, entre os meus medos demenciais e o benefício da actividade, esta ganha àqueles por claríssima goleada. De modo que lá fui com os alunos do 9.º ano ao Porto.
De manhã, assistimos à representação do Auto da Barca do Inferno. A sensibilidade e a graça do, para sempre vivo, António Feio ofereceu-nos um espectáculo maravilhoso. Sem desvirtuar o essencial do texto vicentino, a encenação acrescentou-lhe dinâmica, humor e sentidos. Do ponto de vista de um professor de Português, é talvez a melhor encenação de todas – e eu já vi umas sete ou oito propostas, em vários pontos do país.
À tarde, fomos à Fundação de Serralves, onde está patente, até Junho, uma exposição com trabalhos de Miró, intitulada “Materialidade e metamorfose”. Foi curioso dar conta da estranheza (ora discreta e envergonhada, ora evidente e ruidosa) que os alunos sentiam. “Isto até eu fazia, e mais baratinho!”, asseveravam uns; “Se uma manta com dois baldes colados é arte, vou ali e já venho!”, diziam outros. “Pagámos três euros por isto, sôtor?”, indignavam-se quase todos.
Os guias de serviço bem tentaram explicar os méritos do artista catalão. Convidaram os alunos a esquecer o que entendiam, tradicionalmente, por arte e a abrir a sua atenção (e o seu gosto) a outras possibilidades. Mas os jovens, sem nunca caírem na má educação, encolheram os ombros, de forma geral, ao desafio ali feito.
Já na nossa Escola, no dia seguinte, falámos do assunto. Sincero admirador de Miró, optei por falar-lhes da estética da recepção. Revimos a ideia de código comum, que emissor e receptor devem dominar para se entenderem (mesmo no plano mais elementar da comunicação verbal e não verbal). Uma aluna lembrava-se de ter ouvido à sua guia que o número 2 ao lado de um olho significava, em certo desenho, que a imagem “tinha” dois olhos, apesar de se ver um único. Outra aluna lembrava-se de ter ouvido que uma aranha, nas composições de Miró, simbolizava a mulher. Finalmente, um rapaz lembrava-se de uma imagem, feita sobretudo de linhas, que parecia uma pessoa a correr. Essa figura apresentava, na região da (provável) cintura, uma aranha e tinha uma cabeça que, no dizer de outro discente, parecia o sexo masculino.
Levámos alguns minutos neste jogo (afinal divertido) da descodificação. Não lhes foi difícil sugerir, sorrindo, que aquilo, na tela, era talvez uma mulher a pensar em sexo. E concluímos, sem grandes explicações, que a arte era um diálogo entre o artista e o espectador (ou o leitor, ou o ouvinte). E que o significado de um dado objecto não tinha de ser sempre o mesmo, pois dependia da sensibilidade, da inteligência, da natureza e das emoções de cada receptor. Coisa fatalmente individual, pois, e subjectiva.
Entendo que o desenho presente na segunda sala da exposição representava Miró a pensar numa mulher a pensar em sexo. O leitor de Muito Mar poderá imaginá-lo e dizê-lo como o cronista a pensar em Miró a pensar numa mulher a pensar em sexo. Mas não está livre de outrem achar que se trata de um leitor de Muito Mar a pensar no cronista a pensar em Miró a pensar numa mulher a pensar em sexo. Etc.

Ribeira de Pena, 19 de Fevereiro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Uma versão desta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 23-02-2017.]

1 comentário:

Paulo Pinto disse...

Miró... y no le gustó.
Miré... y luego me encanté.
Olé!