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Número de Ondas

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (73)



Espécie de Pedro
 
1. Imagino Pedro, pouco tempo depois da morte do Mestre, a vaguear por Roma, decerto cansado, talvez com fome, dividido entre o espanto pelo luxo e pela miséria cosmopolitas da sede do império e a indiferença ou animosidade dos transeuntes. A multidão parecer-lhe-ia excessiva para ruas tão pequenas e estreitas, a vozearia tornaria improváveis quaisquer diálogos, a celeridade dos passos gentios impediria o exercício civilizado da atenção.
Imagino Pedro em seu susto profundo – ter uma missão e achá-la, quem sabe, impossível. Como pregar a vinda (e a ressurreição) do Salvador num contexto tão avesso à abertura perante o estrangeiro e suas extraordinárias novas? Como obter deles a bondade de algum cantinho para a peroração, um suficiente silêncio para o discurso se ouvir, uma pausa quieta para o espírito se alimentar?
Do ponto de vista da história das religiões, a viagem de Pedro terá sido um sucesso. E não trago aqui, notai, questões de fé ou de avaliação comparativa dos méritos do cristianismo. Falo de um homem com uma missão fundada na palavra, uma empresa baseada na comunicação persuasiva e eficaz (capaz, digamos, de acender sentidos, de acordar simpatias e cumplicidades entre orador e público).
2. Comecei, na semana passada, a lecionar Os Lusíadas, de Luís de Camões, aos alunos do 9.º ano de escolaridade. É preciso que eles percebam a importância de Luís Vaz na literatura portuguesa e universal; que entendam os planos da epopeia (a narrativa da viagem de Gama, a História de Portugal, a intervenção fantasiosa dos deuses, os comentários felinos do Poeta); que admirem a coragem dos marinheiros e se riam do pícaro pânico de Veloso; que se deliciem com o génio poético de Camões; e, enfim, que se acrescentem de uma cultura literária susceptível de os tornar mais portugueses, isto é, mais cúmplices uns dos outros (dos que estão vivos, dos que já morreram e dos que ainda hão-de nascer).
A minha Roma tem também problemas de espaço. Multidões e objectos atrapalham-me o movimento vital. Televisão, computadores, telemóveis e tablets são um ruído opressor e quase impeditivo da conversa. A existência é feita de pressa brutal e muitas vezes caótica, sem folgas para reflectir ou para contemplar o mundo. Como conseguir que me ouçam?
3. Eu tenho uma missão. É difícil, não haja dúvida. Mas é igualmente amada e formosa: sou, por estes dias, apóstolo de Luís Vaz e da Língua Portuguesa.
Imagina, Pedro.
 
Vila Real, 29 de Janeiro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 02-02-2017.]

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