Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (75)

 
 
Narrativa leve, breve & alegre
 
Além dos textos oferecidos pelos manuais de Português, os alunos têm ainda de ler obras integrais, no âmbito do que se convencionou chamar “Educação literária” (o nome é tão mau ou tão bom como outro qualquer). No caso do meu 7.ºA, já vamos no segundo livro – o primeiro foi O Cavaleiro da Dinamarca, de Sophia; o segundo, História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar, de Luis Sepúlveda.
A ideia de ler, com os alunos, um inteiro volume, ao longo de algumas semanas, parece-me profundamente virtuosa. A melhor forma de instituir-cultivar hábitos de leitura passa pelo mui singelo acto de ler. Por muito que alguns (muitos) alunos estranhem, assustados com o número de páginas, com a quietude do exercício, com a exigência de uma atenção prolongada, pode bem suceder que o gosto se lhes entranhe (para usar uma conhecida fórmula de Fernando Pessoa, à roda da coca-cola).
A meados de Janeiro, deitámo-nos à leitura da novela de Sepúlveda. Apercebi-me, em certa manhã, de um silêncio amável caindo sobre a aula. Nos rostos dos meninos, podia ver-se o sinal claro do encantamento e da curiosidade. Dessa vez, quando se ouviu o toque para sair, senti um quase-enfado, tão pouco habitual nesta iminência de liberdade. Na aula seguinte, uma aluna perguntou-me, assim que me viu no corredor, se íamos continuar a ler a história. Prometi-lhe que sim, se conseguíssemos cumprir, antes, o sumário essencial (leitura do mito de Aracne e exercícios com o discurso directo e indirecto). E voltámos, de facto, às peripécias do gato Zorbas, da gaivota Ditosa e do enciclopédico Sabetudo. Comecei, aliás, eu próprio a contagiar-me do enlevo discente, ao ponto de, nas duas aulas seguintes, ter dedicado a maior parte do tempo à visitação voraz do texto de Sepúlveda.
Na semana passada, só nos faltava ler três capítulos. Distribuí a leitura por todos os alunos e reservei o último capítulo para mim. (Eles gostam de me ouvir, creio, porque faço vozes distintas para cada personagem e acompanho cada situação com caretas e gestos teatrais.)
Quando se aproximava o final, que era o momento de sabermos se a gaivota conseguiria mesmo voar, eu parei subitamente e dirigi-me ao computador da sala. A turma manifestou ruidoso desagrado pela interrupção. Pedi-lhes paciência, assegurando que a leitura seria retomada logo a seguir. Mas um aluno advertiu-me, angustiado: “Mas olhe que só faltam cinco minutos para tocar!”
Sosseguei-os: era tempo suficiente. O que fiz foi procurar no Youtube o tema “Ave Maria”, de Schubert, e usar esta peça como ilustração musical do crescendo da história, rumo ao desenlace glorioso e apetecido – o voo da Ditosa.
Antes de a aula terminar, no seguimento de uma pérola literária que o narrador enuncia (“Só voa quem está disposto a voar”), a andorinha voou enfim. E os alunos desataram a bater palmas, como se festejassem um golo ou a conclusão de um espectáculo admirável.
Brinquei: “Escusam de me aplaudir…”
Uma menina explicou-me: “As palmas são para a gaivota.” Mas eu fiquei feliz na mesma. Como se as palmas, senhores, fossem também para mim.

Vila Real, 11 de Fevereiro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 16-02-2017.]

2 comentários:

Paulo Pinto disse...

Essa turma, que só conheci durante um fugaz ano lectivo, foi uma revelação. De início, não parecia prometer grande coisa. Das 3 turmas do mesmo ano, foi a que teve a média mais baixa no primeiro teste, e no segundo. Tinha um aluno de bom nível, três ou quatro razoáveis, e quanto ao resto, enfim... Coitaditos, eram miúdos humildes, filhos de gente humilde, alguns mesmo muito carenciados a vátios níveis. Mas qualquer coisa entretanto se passou. Perguntavam cada vez mais, colaboravam, queriam saber. Encantavam-se sobretudo com as peripécias históricas: o romance de Pedro e Inês, as maquinações de Leonor Teles... Às vezes eu acrescentava pormenores fictícios e diáĺogos improváveis, só para prolongá-las e aumentar o dramatismo (aprendi com o J. Hermano Saraiva...). As dificuldades da maioria eram evidentes, mas tentavam aprender, e era cada vez mais um prazer entrar na sala deles. As notas subiram gradualmente, até em termos relativos. No último teste, foram a melhor turma das três. Foi neste ponto que nos despedimos. Mas estou contente que continuem a ser como eram, mesmo estando dois anos mais velhos. São miúdos muito bonitos por dentro; desculpa-lhes os erros ortográficos e continua a alimentar-lhes o espírito, pois eles merecem e recompensam-nos com a simpatia e a admiração que nos manifestam. Vai valer a pena. Abraço!

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Caríssimo Paulo, li com muito interesse o teu comentário, embora só agora (para vergonha do anfitrião de Muito Mar) te responda. Revejo-me profundamente na tua apreciação humana e académica deste público tão simples e tão rico - e, já agora, na tua visão de Escola e de Vida. Abraço & reiterada cumplicidade! JJC