Bússola do Muito Mar

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segunda-feira, 12 de abril de 2010

Uma sílaba de barba


Era uma vez um homem que só escanhoava metade da barba. Isto é, dividia o rosto a meio, no sentido longitudinal, e rapava os pêlos do seu lado esquerdo (pilosidade pescoçal incluída), deixando o lado direito incólume.
A mulher sorriu à ideia do homem. Perguntou-lhe:
- Não fazes a barba toda?
O homem sorriu também e disse:
- Uma parte de mim quer fazer; outra parte não. De modo que, em vez de fazer a barba, faço a bar.
A mulher admirou-se:
- A bar?
O homem explicou-se:
- Sim. Faço apenas uma sílaba da barba.
No final da primeira semana, a diferença entre um lado e outro notava-se bem.
Ao caminhar para o emprego, caminhando ao longo da rua, pessoas do lado direito da sua marcha (o barbeiro, o engraxador, o professor Manolete, a dona Berta da agência de seguros) comentavam, cheias de um azedume burguês:
- Parece que não tem tempo para cuidar do aspecto! Aquilo é doença ou preguiça…
As pessoas do lado esquerdo (o senhor Gregório da papelaria, a menina Lurdes na sua eterna cadeira de rodas, as irmãs Melo da frutaria, às vezes um ou outro marinheiro saindo da pensão Ideal) tinham uma visão diferente:
- Até dá gosto! Sempre muito bem afeitado, com um ar limpo e saudável... Fossem todos assim…
Claro que, no regresso a casa, pelas sete da tarde, o tom dos comentários tendia a transformar-se. As pessoas que o viam regressar, no lado direito da sua marcha (e que, de manhã, lhe ficavam à esquerda do seu movimento andante), admiravam-se bastante do que viam:
- Muito lhe cresce a barba da manhã para a noite. Parece um bicho! Eu não acredito em lobisomens, mas nunca se sabe…
Do outro lado da rua, aqueles que de manhã lhe haviam verberado o mau aspecto, resmungavam novos reparos, carregados de uma ironia venenosa:
- Ainda bem que o emprego lhe dá tempo para fazer a barba. Por isso nos fartamos de esperar na repartição. E queixam-se eles da falta de pessoal…
Dois meses depois da sua ideia, o homem já tinha, no seu lado esquerdo, uma tão imensa barba que, mesmo quem o observava do lado contrário (e sem grande esforço) percebia aquela divisão tão extraordinária.
Dos dois lados da rua, de manhã e de tarde, todos concluíam que se tratava, afinal, de um louco.
Só a esposa, que estava ao corrente da exacta excentricidade do homem, sabia que não era bem loucura. No máximo, seria uma sílaba de loucura. E por isso assegurava, em repetidas conversas com o barbeiro, o engraxador, o professor Manolete, a dona Berta da agência de seguros, o senhor Gregório da papelaria, a menina Lurdes na sua eterna cadeira de rodas, as irmãs Melo da frutaria, às vezes um ou outro marinheiro saindo da pensão Ideal:
- O meu marido é apenas lou.


Ribeira de Pena, já 12 de Março de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra foi colhida na wikipédia. Trata-se de uma cena de “Recordações da Casa Amarela” (1989), de João César Monteiro, com o próprio no principal papel.]

2 comentários:

Anónimo disse...

Queria deixar um comentário, mas estou com pregui.
Vânia

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Agradeço-te de qualquer manei.
Bj.


PS: Faz-te seguidora do Muito Mar, pá.