Depois da inocência
O meu amigo Manuel Vilela foi soldado em Moçambique durante
a guerra colonial. Muitas vezes o ouvi recordar episódios dessa sua experiência
– uns eivados de dramatismo e tragédia, outros carregados de ironia, todos
profundamente humanos e comoventes. De cada vez que fala, ao invés do
sexagenário sereno de hoje, que teme o colesterol e as mudanças de clima, vejo
ali um moço de vinte anos cheio de saúde e beleza, capaz de todas as proezas e
de todos os sonhos.
Entre muitas histórias, diverte-me aquela do camarada cuja
noiva fez chegar a África uma cassete áudio, murmurando juras de amor, enquanto
se ouvia em fundo a canção proibida de Gainsbourg, maliciosamente interpretada
por Jane Birkin, “Je t’aime (moi non plus)”. Alguns dos soldados, por
ingenuidade ou acinte, deram em tecer comentários aos gemidos da gravação,
pondo em causa a castidade da moça – e o infeliz receptor, após alguns sorrisos
dificultosos, decidiu mesmo terminar o namoro com a putativa rameira.
Impressionou-me igualmente o relato da morte de um soldado
folgazão, amigo especial do meu amigo, pouco antes do regresso do pelotão à
metrópole, num lance de imprudência jovial que envolveu muita bebida e
mulheres.
Mas, entre tantas narrativas, avultou-me sobretudo o
pormenor que Manuel me contou sobre o regresso a Portugal, a bordo do Niassa:
foi uma viagem cheia de silêncio e angústia, como se os soldados - na ressaca
de tantos perigos, violências, mortes - carregassem consigo o peso inteiro do
mundo. O contrário, garante o Vilela, da viagem de ida, que fora tão alegre e
ruidosa.
Num outro contexto, aconteceu-me algo semelhante, aí por
1979, quando fui a Alvalade jogar, pelo União de Coimbra, com o grande Sporting,
na 1ª jornada da 2ª volta do campeonato nacional de juniores. Na 1ª volta, o
resultado do jogo (disputado no célebre campo da Arregaça) ficara-se por 1-1.
No autocarro entre Coimbra e Lisboa, havia uma espécie de entusiasmo febril,
feito de piadas, risos, apartes espirituosos, pois estávamos todos tão certos
da glória iminente: um triunfo na “casa” do líder, a mudança para o 1.º lugar
na classificação, o futuro de fama e riqueza prováveis. Perdemos por 4-0 e, em
vez de sermos os melhores do mundo, levámos um baile dos antigos, mal tocando
na bola. A viagem de regresso foi um suplício, algo entre a tristeza e a
vergonha. Toda a gente percebia, no autocarro do nosso desapontamento, que
aquela derrota custara muito mais que um jogo.
A idade ajuda-nos a lidar melhor com a tragédia, as perdas,
as desilusões, a própria passagem do tempo. Mas tenho percebido que nunca se
está completamente imune à Dor, essa cabra.
Ribeira de Pena, 01 de Fevereiro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 04-02-2016.]
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