Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (113)



Elogio do aforismo

- Lembro-me de, em menino, estar febril, vomitando aos soluços, já sem forças para me queixar ou pedir socorro. Invariavelmente, era a minha Mãe quem operava o milagre do consolo e da esperança. Estava ali, omnipresente como Deus, a temperar de amor o sofrimento mais negro, colocando as suas mãos sobre a minha testa, amparando-me a cabeça.
- Mãe é Mãe.
- Sim, mas o que digo aqui é mais do que o teu provérbio diz. Sabes, o tempo deu entretanto a volta, e acontece-me agora, por vezes, ter a minha Mãe com febre e vómitos, sem forças já para se queixar ou pedir socorro. Tomo, nessas ocasiões, as suas mãos nas minhas, como se ela fosse uma menina em apuros, e eu fosse, quiçá, o seu Pai, e faço-lhe festinhas na cabeça, ou seguro a sua testa enquanto lhe sucedem os arrancos de estômago.
- Filho és, Pai serás. E amor com amor se paga.
- Pois, mas creio que o fenómeno não cabe em simples ditados populares. Vê que os mistérios da vida são demasiado complexos para tão pobre literatura. Há na nossa existência aspectos insondáveis à luz dessa linguagem tão rudimentar. Estou a lembrar-me do desvalor que até o maior dos lingrinhas atribui à própria vida em comparação com a de um ente visceralmente amado. Eu e a minha Filha, por exemplo. Tenho de perder conforto para ela estar bem? Perco-o, sem hesitações. Tenho de não dormir para ela poder descansar? Não durmo, naturalmente. Tenho de morrer para ela viver? Morro, claro.
- Amor, a quanto obrigas! E quem tem coragem, tem vantagem.
- É verdade, mas não é decerto apenas disso que se trata. Há uma espécie de superior dimensão em tudo quanto envolve o Amor. É, estou convencido, o maior enigma de todos os tempos e de todos os lugares. Que força é esta, caramba? De onde vêm tantos (infinitos) volts para tal luz? De que nascente surgem as inestancáveis lágrimas pela perda de certa amada gente? De que droga deriva tamanho ânimo, que nos resgata dos pântanos mais traiçoeiros e nos impele às subidas mais impossíveis, nos torna heróis semelhantes aos de mitos ou de banda desenhada, nos garante a resistência a todas as provações?
- Diz-se que a fé move montanhas.
- Pois, mas deve ser mais do que isso. Já to lembrei: um mero aforismo não pode ser capaz de dizer quanto te venho aqui dizendo.
- Os provérbios são a voz do povo.
- Serão, talvez, mas tudo quanto aqui te trago, amigo, precisa de uma linguagem maior. De uma linguagem (estava a ver se evitava este adjectivo) divina.
- A voz do povo é a voz de Deus.

Coimbra, 19 de Novembro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 23-11-2017. A imagem foi colhida, com a devida vénia, em https://laisladesiltola.es.]

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