Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Fotografias antigas (Notas a sépia) - 2

O primeiro dia

Chego à escola pela primeira vez. É em Lavacolhos, Fundão. Hei-de por lá ficar durante duas semanas, modo encontrado pelos pais para contornar a impossibilidade de matrícula em Coimbra, na Escola do Casal Ferrão. A professora, Dona Angélica, tinha dito que só no ano seguinte seria possível o meu ingresso no mundo dos livros: havia muitos alunos inscritos em Coimbra e eu só completava os seis anos em Abril...
Lavacolhos é a terra do meu avô materno, António dos Reis Mateus. Há por lá ainda tios e primos afastados. A terra afigura-se-me, à primeira vista, um planeta estranho, rude, frio. Minha mãe, carregando ao colo a Fátima (irmã mais nova, quatro anos apenas), lá tenta despedir-se, mas eu agarro-me desesperadamente à sua mão.
- Tem de ser - assevera.
Choro. A professora desta escola iniciática chama-se talvez Natália. Nós diremos sempre, em vez do seu nome, "Senhora professora". É uma mulher já antiga, pouco afectuosa. Puxa-me com vigor para a segunda carteira da direita e sugere à minha mãe que volte ao meio-dia.
Vejo as lágrimas da minha mãe através das minhas próprias lágrimas. Há mais gente como eu e a minha mãe naquela manhã de Outubro. E há mais lágrimas como as nossas. Os meus colegas, conhecidos já uns dos outros, miram-me com curiosidade trocista.
A minha mãe parte. Experimento a solidão mais triste de todas. É como se me obrigassem a nascer outra vez e não houvesse à minha espera qualquer aconchego compensatório.
Depois, a professora desenha no quadro: a e i o u. Nós repetimos e os sons vão-se casando, na minha memória, com as letras, até se tornarem - letras e sons - coisas unas, indissolúveis, lógicas.
Com isto, uma felicidade instala-se e troco as lágrimas do início por um sorriso grato.
Ao almoço, mostro à minha mãe o que aprendi. A minha mãe acaricia-me. Decido-me a saber mais e a fazer mais para outras (futuras, novas) carícias merecidas.
Desde aí que a minha vida é um pouco construída nesse sentido: mostrar-me à minha mãe, ser digno das suas carícias.

Arco de Baúlhe, hora d'almoço, 20 de Setembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho

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