Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sexta-feira, 11 de março de 2011

Discurso da Primavera improvável


Apetecia-me muito um país livre da mediocridade, da hipocrisia, da ingratidão e da estupidez. Eu sei, eu sei: também eu próprio habito, por não poucas vezes, alguns desses lugares da miserável condição humana. Mas lá o reconheço. Mas lá me arrependo. Mas lá me consumo de remorsos.
Sou, perdoai, um bocadinho diferente deste país geral. É nesse bocadinho diferente que está o meu desconforto quase todo. Eu estaria talvez melhor se conseguisse ser um bocadinho mais geral, não é verdade?
Apetecia-me um país melhor, eis tudo. Sei, sei: não há esse país, e se há não é aqui.
Isto, enfim, deve ser cansaço, isto é, uma pedra no coração.
Ainda há alunos que, no final do segundo período, não sabem conjugar o verbo être.
O senhor ministro das finanças diz que há mais medidas de austeridade prontinhas a servir.
Telefonaram a dizer que não podes.
O senhor primeiro-ministro diz que a educação está muito melhor.

O senhor presidente da República diz que os jovens, coitados, sofrem.

Uma pedra no coração, como vos disse. Não há aquele país, eu sei.
Cansaço. Invade-me o espírito uma volúpia perigosa - a de um abismo para onde, caindo, pudesse hibernar deste presente estúpido, desta vida à razão de juros, desta desilusão geral que governo e vida e mundo são.
Adeus, adeus.

Ribeira de Pena, 11 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A pintura ("Alegoria de Primavera", 1482) é de Botticelli.]

3 comentários:

Anónimo disse...

...sem dúvida. O mais ingrato é a descrença colectiva num país melhor, a ausência de luta por um bem que pode ser real, a submissão a um status quo em que o chico espertismo é rei.
Falta a coragem de agir com ética e com o máximo rigor independentemente dos possíveis beneficios que daí possam advir.
abraço
albino

Joaquim Jorge Carvalho disse...

É isso mesmo, Albino: o triunfo execrável do chico-espertismo...

Abraço!

Paulo Pinto disse...

É tudo verdade, tudo verdade. Essa descrença sinto-a também, e aumentada pela percepção de sermos todos falíveis, limitados e (como direi?) impuros nos pensamentos e acções. Mas olhemos com atenção à nossa volta: a inteligência, o talento, a decência,a generosidade, também habitam no meio de nós, e em grande medida. Não subestimemos o potencial de regeneração que temos, nós cidadãos, nós povo, nós Humanidade. Também os «Vencidos da Vida» traçavam um quadro negro do Portugal do seu tempo, como se vivessem o último estertor da Nação. Não foi. Um abraço.