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sábado, 12 de março de 2011

Literatura, Cinema: Amores de Perdição


A (re)leitura de uma entrevista de George Steiner a Ramin Jahanbegloo, trouxe-me à memória algumas considerações que teci, oportunamente, sobre o trabalho de adaptação de uma obra literária ao cinema.
Em alguns casos, o resultado é pavoroso. Noutros, encontramos trabalhos brilhantes de reinvenção da narrativa, que acrescentam não poucas vezes luz e profundidade ao enunciado textual.
É o que acontece decerto com a obra Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco / Manoel de Oliveira.
Eu creio que o realizador de cinema é sempre um leitor (apaixonado, na maioria dos casos) de uma obra literária, só depois assumindo um outro estatuto, o de recodificador (ou transcodificador), que pretende traduzir para outro domínio semiótico aquilo que entende ser o essencial do que leu.
Quer o escritor, quer o realizador recorrem à função poética (ou, como aqui prefiro dizer) estética da linguagem, que é uma instância comum ao cinema e à literatura, no sentido em que liberta, nos dois casos, o discurso narrativo dessa pobreza e incompletude que há, regra geral, no chão factual da existência humana.
Ao debruçar-me sobre a questão da interpretação, ocorre-me o famoso poema de Fernando Pessoa, “Autopsicografia”, que tantas (algumas, boas; outras, disparatadas) leituras já motivou. Na primeira quadra, que sei de cor desde o meu 9.º ano, o poeta escreveu:
«O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.»


Não é por acaso que esta estrofe me vem ao espírito, quando penso na apropriação, pelo cinema, dos principais aspectos da obra literária. Com efeito, tal como nos versos pessoanos se explica, o que o criador literário faz é representar uma realidade pela via da sua transformação de facto (real ou imaginário) em arte. Não há aqui, obviamente, meros objectivos de mimese jornalística, aliás impraticável mesmo que o escritor o desejasse. Há, sim, a intenção de criar (ou recriar) o real, seja pela sua refundação, seja pela sua recusa ou superação. A única “dor” verdadeira, a que o leitor tem acesso (ou a que o leitor tem direito), é a que o poema seja capaz de nele - leitor - gerar.
Deixai, agora, que (hereticamente) eu mesmo reescreva a quadra de Pessoa, para vos/nos recordar o que fundamentalmente acontece ao realizador de cinema, enquanto sujeito receptor e emissor de arte:

O cinema é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir a dor
Que na escrita, lida, sente.


Ribeira de Pena, 12 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[Este texto faz parte de um longo trabalho de seminário que concluí em 2008, no âmbito do ano curricular do meu Doutoramento em Literatura Portuguesa. A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.films-sans-frontieres.fr.]

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