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Número de Ondas

sábado, 12 de março de 2011

Vida gloriosa do senhor Joaquim Antunes


O senhor Joaquim Antunes é funcionário dos correios, na baixa de Coimbra. A sua casa fica nem cem metros a norte da loja empregadora. É uma casa velha e modesta, de renda baixa, com as paredes saudosas de tinta e o soalho muito amante da humidade e do caruncho. Tem uma filha, que é advogada de razoável sucesso na Figueira da Foz. A esposa foi sempre doméstica e, tirando as dificuldades de visão, é uma cinquentona bastante saudável.
A rotina é, para o senhor Joaquim Antunes, uma boa amiga. Levanta-se todos os dias às sete e meia da manhã, toma o seu rápido banho, trata do hálito, das pilosidades e do cabelo (tudo em sete minutos), veste-se com vagar e rigor, toma um café e come uma torrada. Depois, passa ainda pela pastelaria Saturno e alimenta o sangue de uma chávena mais de cafeína, enfim começando, pontualmente, o serviço distribuidor às nove. Ao almoço, beija a mulher, vem com ela até à Praça 8 de Maio em passeio de namorados serenos, despede-se pela uma e meia da tarde e recomeça, com a mesma britânica disciplina, a sua lida profissional às catorze horas.
De tarde, passa pelo Núcleo Sportinguista do Arnado, bebe um, dois copos de vinho tinto, come (nem sempre) umas pataniscas de bacalhau, conversa e ri sobre a vida e, assobiando uma modinha da juventude, regressa a casa nunca depois das oito da noite.
Já teve carro, agora não. Era muita despesa e muita preocupação: gasolina, seguros, imposto de circulação, inspecção periódica, manutenção (travões, óleo, pneus, filtro de ar), e o dinheiro de um funcionário não estica. Pelos mesmos motivos, não tem cartões de crédito e há muito desistiu de contrair empréstimos - por isso lhe diz pouco, aliás, este rumor de pânico que parece acompanhar, nas pessoas e nos jornais, as notícias de juros subindo, de taxas euribor, de revisões de spread.
O seu luxo é, de vez em quando, meter-se com a mulher no comboio ou na camioneta e ir à praia: em Mira, na Tocha ou na Figueira da Foz, percorre longamente as marginais ao mar, com a sua namorada de sempre, numa espécie de eternidade provisória que mais ninguém, senão os amantes, poderia perceber.
Ao fim de semana, gosta muito de ler no pátio soalheiro que, em lugar inacessível aos olhos dos que passam na rua, circunda parte da sua casinha. Também, Deus lhe perdoe, escreve. Raramente se aventura na poesia, mas gosta de imaginar e, mais raramente, de escrever contos sobre detectives, marinheiros e crianças aventurosas.
Espera pouco da vida, por crer que tudo quanto tem é tudo quanto há para ter.
Quando a filha está com o casal progenitor, Joaquim Antunes sente-se completo como uma obra de arte.

(E este é o Joaquim que eu gostava tanto de ser.)

Ribeira de Pena, 12 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem da gravura é da autoria de Stuart de Carvalhais.]

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