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quinta-feira, 17 de março de 2011

Uma Recordação Indecente


Agustina Izquierdo é o nome da autora de um belo romance, Uma Recordação Indecente (Lisboa, Editorial Teorema, 1995, tradução de Magda Bigotte de Figueiredo). Descubro, só depois da leitura, que "a senhora escritora" é, afinal, não a escritora catalã que eu julgava que era, mas um escritor. "Agustina Izquierdo" trata-se de (leio) um pseudónimo de "um escritor francês".
O meu amigo Daniel Abrunheiro garante-me, muuitas vezes, que é capaz de, em 90% dos casos, saber se determinado texto literário é de um homem ou de uma mulher. Ora, eu fui gloriosamente enganado no caso de Uma Recordação Indecente. Embora a narrativa distribua o discurso por várias vozes, várias personagens (masculinas e femininas), eu juraria que ali havia - a tutelar demiurgicamente o enunciado - uma mulher escrevendo-se.
O romance trata das questões magnas do Amor e da Perda. Mas, pelo meio, há um admirável tratamento do Desejo ("esse cão", como escreveu Augénio de Andrade): estranhas e perturbadoras fantasias sexuais, ousadias de linguagem equilibrando-se entre o porco e o sublime, mistérios sobre o corpo (o nosso e dos outros) - eis de que é feito o ritmo (o frémito) essencial deste discurso narrativo.
Alguns passos pareceram-me antológicos. Deixai que vos ofereça dois pequenos excertos.
Na página 90, exprimindo o ponto de vista de um homem subjugado, em registo que (sei lá porquê) me lembrou A Dama das Camélias, de Dumas Filho, lemos:

"Todos os dias eram uma recusa. Eu nunca sabia que forma ia assumir a frustração nem em que momento o meu desejo,impedido, me iria levar a cerrar os punhos repentinamente. Mas sei agora como é impossível dominar o sofrimento que nasce da frustração; não há nada que o não piore; é praticamente impossível tentar abafá-lo no momento em que ele nos lembra mais uma vez a entrega e volta a mergulhar-nos no mesmo desespero de uma criança que deita os bofes pela boca tal a fome que tem. Sei como é ilusório tentar impedir que ele se estenda ao dia inteiro e até aos sonhos que o encerram, onde o desejo se vinga e onde a excitação, longe de se acalmar, aumenta, endurece, cristaliza."


Na página 110, a definição de Deus (da ideia de Deus), por Agustina Izquierdo, soou-me ao nosso Ruy Belo, e não é pouco elogio dizer-se tal seja a (e de) quem for:

"Deus é o que não cessa de cair. [...] O que é Deus? Que tenhamos nascido. Que tenhamos nascido de outras pessoas que não nós mesmos e a partir de um acto em que nós não estávamos presentes e esses outros estavam nus."


E agora, para que novamente se roam de inveja, aqui vai o (já habitual) apontamento de reportagem: o meu livro foi comprado no hipermercado do Jumbo, em Vila Real, e custou-me um Euro. Pois, pois.

Ribeira de Pena, 17 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

2 comentários:

Daniel Abrunheiro disse...

King, olha que algumas vezes aquilo que eu escrevo parece de gaja. Ou de cadela, no meu caso.

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Para que conste: o Daniel gaba-se e, de facto, acerta!

Quanto ao sexo dos teus textos, Amigo... a questão, em boa verdade, é: qual é o sexo da Língua Portuguesa? Não vale dizer que "agora é castrado(a) devido ao acordo ortográfico"...

Abraço, Daniel!