Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Morte & Vida


Fez-me muita impressão que o meu avô Manuel, pai do meu pai, morresse. O tio Zé Melo deve ter percebido a minha incapacidade de lidar com o fim e disse como se respondesse a algum comentário:
- A morte é o diabo.
Notei, na missa fúnebre, a quantidade de chapéus-de-chuva, a lama nos sapatos das senhoras, os olhos vermelhos da mãe e das tias. O padre teceu sobre o passamento um longo murmúrio e, algures na retórica lamentosa, assegurou à família que a este acidente biográfico do avô se sucederia o princípio da verdadeira existência. Afiançou-nos:
- Deus é a vida.
Na minha cabeça, por anos, o tio Zé Melo e o sacerdote discutiram sobre o assunto. O José Régio, no amargo “Cântico Negro”, participou no debate. O Vergílio Ferreira, no “Em Nome da Terra”, esmurrou o clero. O Mário de Carvalho, no “Deus passeando na brisa da tarde”, foi elegantemente ambíguo. O José Saramago, no “Evangelho segundo Jesus Cristo”, riu-se escandalosamente da ficção bíblica.
Eu, por razões de sanidade mental, gosto de fingir que não há morte. Mas, oh Deus, quando a realidade desmente essa ilusão, há sempre uma voz que repete dentro de mim:
- Oh diabo! Oh diabo …

Ribeira de Pena, 22 de Setembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.ultrapassandobarreiras.blogspot.com.]

2 comentários:

AGM disse...

Há um poema da Florbela (muito, muito criança, ainda) que diz, mais ou menos, o seguinte:

a vida e a morte são
o sorriso lisonjeiro
o amor tem o navio
e o navio, o marinheiro

Estão interligados todos os elementos (acrescento eu).

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Bem-vinda, Anabela.
By the way... a Marguerite Duras diz (com muito maior profundidade do que parecerá) que "la vie est um chemin vers la mort". Se buscássemos linguagem da nossa Espanca para enunciar a ideia, diríamos que a vida é uma viagem em alegre navio com rumo, hélas, fatalmente mortal. No entretanto, enquanto não chega "o fim do mundo", como bem recomenda o Drummond de Andrade (ou o Thoreau), dancemos como se o mundo não acabasse nunca. Beijinho. JJC