Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

O Papão


Isto do "comportamento dos mercados" é, antes de mais, uma interessante metáfora. No ensino básico, diz-se que se trata de uma personificação. Talvez valha a pena olhar para a biografia semiótica desta realidade abstracta devinda ser em acção.
Um conjunto de barrigudos cínicos reúne-se com um conjunto de engravatados linfáticos e combina preços, margens de lucro, negócios. Começam por negociar com indivíduos, empresas, organizações, bancos. Depois, estendem os tentáculos a governos.
Nesta última fase, já não se fala do "Senhor A" (accionista maioritário de um Banco importante), ou do "Senhor B" (chairman de um Grupo Económico famoso), ou do "Senhor C" (consultor de uma agência financeira às ordens de certo barrigudo cínico e de certo engravatado linfático). Fala-se de "Mercado". De "Mercados".
A opção estratégica pela ABSTRACÇÃO (distinta de gente concreta como o JUDEU ou o ONZENEIRO do Auto da Barca do Inferno) permite que barrigudos e linfáticos exploradores escapem ao ódio e ao vitupério dos explorados.
Mas a evolução simbólica do conceito não fica por aqui. Segue-se ainda a construção (de cariz mítico-místico) de uma nova personalidade: o MERCADO TODO-PODEROSO. Trata-se de um produto deveniente da abstracção de que atrás falávamos, agora materializado nesta figura de bicho-papão terrível, monstro omnipotente e omnipresente, cujos caprichos são ordens e cujas razões não admitem, sequer, discussão. E é essa nova personalidade que legitima expressões como a que recordamos no início desta croniqueta. Como narrando uma fábula, os jornais referem -sem propósitos humorísticos - "o comportamento dos mercados."
Esta metamorfose semiótica não põe em perigo o bem-estar e a impunidade dos barrigudos e dos engravatados do início da história. Mesmo que nos sintamos agredidos pelos mercados, a verdade é que a culpa nunca se afigura de alguém em concreto...
Não vos admireis, pois, se em resposta aos vossos protestos pelas medidas recessivas e depressivas, os políticos vos dizem: "É o Mercado, esse monstro." Ou: "São os Mercados, esses monstros."
Aqui entre nós: os monstros são invenções de uma minoria para que a maioria não se revolte.

PS: E, já agora, o Mercado é PAPÃO porque PAPA muito, muito, muito.

Coimbra, 27 de Dezembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

2 comentários:

Paulo Pinto disse...

Os Maias da América Central, esses grandes quebra-corações (ou arranca-corações, para sermos exactos), predisseram o apocalipse para 2012. Ora aí está! É quando o cinto vai ficar tão apertado que já não consente mais apertos e ... pum! Está explicado. Resta adivinhar se os Mercados descerão dos seus olímpicos arranha-céus para impor o seu domínio perpétuo ou se uma grande implosão varrê-los-á, aos Mercados, da face da Terra, offshores incluídos. Seja como for, ainda mal começámos 2011. Amigo JJ, pelo sim pelo não, aproveita-o bem!

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Amen: aproveitemos, por pouco que seja, quanto nos caiba em sorte, sim. (En passant, sejamos vigiliantes e - à falta de outra possibilidade - resmunguemos dignamente.) Abraço, Paulo!