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sexta-feira, 22 de setembro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (104)



O último ano de Monsieur Burel

Passou na RTP2, no passado dia 12 de Setembro, um documentário intitulado “Mon maître d’école” (com o título “Adeus, meu professor”, em português). A francesa Émilie Chérond teve uma ideia luminosa: acompanhou, com uma câmara de filmar, o último ano de carreira do seu velho professor primário, recolhendo en passant impressões, comentários e desabafos deste seu maître, Monsieur Burel, acerca da escola, da profissão, das gentes da vila, da humanidade. A realizadora reconhece, aqui e ali, práticas pedagógicas que, no seu tempo de menina, a impressionaram já – e revê-se na cúmplice felicidade dos petizes do século XXI, por exemplo na construção de um desenho colectivo, ou na possibilidade de cada aluno recorrer livremente à “caixinha das perguntas” e questionar o docente sobre astronomia, leis, História, flatulências, superstições.
O documentário, embora reflicta a dinâmica variegada e ruidosa de uma turma de meninos e meninas em estado de ebulição contínua, compreende a lentidão própria da existência rotineira e serena, feita de repetições e de regras (formais ou tácitas). E, na verdade, não há nesta dicotomia qualquer contradição: o senhor Tempo é, por natureza, um compósito de continuidade e variação, como amplamente já nos ensinaram Bergson ou Thomas Mann (entre outros sábios).
A noção de que o velho professor cumpre o seu último ano de profissão empresta a cada gesto e a cada frase um extraordinário peso simbólico. Convenhamos: o valor da existência humana tende a inflacionar-se perante a iminência do fim a haver. Explica o senhor Burel, a dado momento, que a reforma representa “o fim de uma viagem, de uma aventura, de uma paixão”.
Pelo meio, o professor viaja com os alunos até Paris, proporcionando-lhes a primeira viagem de metro, a primeira subida à Torre Eiffel, a primeira (quiçá única) entrada no parlamento. Os alunos ajudam-no a ver a Novidade com a virgindade própria do olhar primeiro – e, entre risos e frases descontínuas, garantem a utilidade desta visita de estudo, “pois serviu para aprendermos e para nos divertirmos” (cito de cor).
É ainda o velho instituteur a fazer as honras da casa, recebendo a colega que o substituirá e apresentando-a aos alunos. (Há aqui uma coincidência poética: a nova docente está grávida, como é próprio de uma metáfora sobre o porvir).
No final, a vila despede-se, numa festa muito familiar e singela, do professor Burel. Pela primeira vez, vemo-lo chorar, de olhar assustado e triste. E eu, que tenho esta eterna doença de sofrer excessivamente com a passagem das horas, e que ainda por cima sou um Monsieur Burel perdido por Trás-os-Montes, chorei também. Adeus, senhor professor. Até já.

Vila Real, 15-09-2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 21-09-2017. A foto foi colhida, com a devida vénia, no site da RTP.]

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