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Número de Ondas

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (103)


Humildade, palavras e espanto, segundo Pina

Durante o saudoso Agosto, um Amigo ofereceu-me uma prenda maravilhosa: um livro com 10 entrevistas feitas a Manuel António Pina, com o título Dito em voz alta, organizado por Sousa Dias (Coimbra, Pé de Página Editores, Lda., 2007). Por cósmica coincidência, Pina é um dos meus poetas preferidos – e o ofertante, que deixo aqui por nomear, é talvez, hoje, o maior poeta português vivo.
O livro devora-se numa tarde. Durante a leitura, costumo sublinhar o que mais me fere a atenção e o entendimento, e dei por mim a assinalar, frase sim - frase sim, as palavras do genial entrevistado. Da entrevista a Maria Augusta Silva (páginas 57-77), trago-vos algumas das ideias do poeta, que ainda me ecoam, como música, nesta ressaca do Verão.
À pergunta “Que levou para a literatura o jornalista que é?”, o escritor responde: “Jornalismo e literatura trabalham com a mesma matéria-prima, as palavras (fiz jornalismo de imprensa). No meu caso, aquilo que de mais importante o escritor terá aprendido com o jornalista foi a humildade. Um jornal, como dizem os velhos tipógrafos, serve no dia seguinte para embrulhar peixe…” Maria Augusta Silva parece estranhar tal certeza e interpela-o: “Esse é igualmente o destino da arte literária?” Pina não duvida: “Da literatura também; se não no dia seguinte, no ano seguinte ou no século seguinte, não há diferença qualitativa entre um dia ou um século. O destino de toda a literatura e de todos os escritores é esse, o esquecimento. […]”
À pergunta “Ao jornalismo que deu o escritor?”, responde: “O jornalista aprendeu com o escritor, fundamentalmente, o respeito pelas palavras. As palavras não são malas de transportar sentido, são seres vivos e volúveis, a umas pessoas dizem umas coisas e a outras coisas diferentes (e a algumas não dizem coisa absolutamente nenhuma). E se não formos capazes de manter com as palavras uma relação simultaneamente de familiaridade e de respeito, de autoridade e de amor, elas acabarão por nos arrastar pelo nariz e nos pôr a dizer o que muito bem entenderem, ou então, infelizes e amedrontadas, calar-se-ão para sempre.
Finalmente, à pergunta “Quando escreve para crianças, sai de uma idade real para reinventar o espanto?”, reage com duas perguntas e, pelo meio, uma afirmação poderosíssima em forma de dúvida: “O que é uma idade real? Talvez a única idade verdadeiramente real seja a do espanto. Que idade temos quando perdemos a faculdade do espanto senão a da morte?
Com Setembro, regressou o ruído nacional – das eleições autárquicas, do orçamento para 2018, das arbitragens futebolísticas, dos processos judiciais mais conspícuos. Entro por este mês com um mal disfarçado medo, ansiando já por um novo Verão que me liberte do caos habitual das nossas vidinhas. O Inverno a haver (e a atravessar) é uma espécie de casulo triste, no interior do qual não bem vivo, apenas duro. Conto com Manuel António Pina e outros sábios para me trazerem (ou anunciarem) alguma possibilidade de Sol.

Coimbra, 09 de Setembro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 14-09-2017.]

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