Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (101)



Agosto (in memoriam)

Uma vez por ano, a vida autoriza-me o regresso ao aconchego da minha cidade natal. Por trinta seguidos dias, sou abençoado com a companhia de Coimbra-Mãe, ando pelas ruas antigas com a felicidade de um soldado de visita a casa, em licença prolongada, e rapidamente abraço os bocadinhos novos de paisagem impostos pelo progresso – um Café, um hipermercado, um quiosque, uma oficina de reparação de automóveis, um jardim, um prédio, um auditório a estrear, uma empresa ligada a medicamentos, um centro lúdico (para crianças & pais), súbitas árvores, semáforos que um velho vizinho reclamava há anos.
O problema desta felicidade, como séculos de literatura e de aforismos nos ensinam, está em que se acaba. De forma discreta, o cínico Outono envia mensagens: que é senão isso esta aragem mais fria à hora do jantar?
A minha existência não se contabiliza por anos civis, e talvez por isso me signifique tão pouco aquele ritual das doze badaladas no fim de Dezembro. É a cada ocaso estival que me acrescento de velhice e da ideia - sempre absurda - de deslizarmos, sem remédio, para a morte (Marguerite Duras: “La vie est un chemin vers la mort.”)
Mais do que o recomeço da lida profissional, custa-me a partida de Coimbra. Como se as obrigações me arrancassem dos braços da amada Cidade-Mãe. Há, convenhamos, uma profunda ironia naquela espécie de eufemismo que arranjaram para o verbo “trabalhar”: ganhar a vida. Ganhar, senhores?! 
Mas isto que vos digo é decerto pouco (quase nada) se comparado à dor hiperbólica de quem labuta fora do seu país. Despedi-me, ainda agora, de tio e tia, emigrantes há vinte anos na Alemanha, ambos sexagenários já. Falta-lhes um ano e três meses para a reforma e, claro, o regresso final. Despedem-se com as costumeiras lágrimas e piadas de circunstância. Também há Morte nas despedidas, mesmo que a conspícua Cabra não venha já.
Ainda não me passou a tão grande tristeza de me, neles, despedir do Verão, murmurando votos de para o ano estarmos todos ainda por cá. Mas o objectivo está definido: durar até ao fim do iminente-eminente Inverno, e depois voltar a viver.


Coimbra, 28 de Agosto de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.travel_in.pt.]

2 comentários:

Paulo Pinto disse...

Caríssimo, também é tido por certo que damos mais valor às coisas quando nos vemos privados delas. Precisamos de lugares ou de pessoas por quem ansiar, à espera de repetidos reencontros. Essa vida dupla ou tripla ou múltipla enriquece-nos também. Quem nunca sentiu como familiares (e portanto como suas) outras paragens, outras caras, outras pronúncias, etc., viveu menos. Eu gosto de ter duas vidas. E tenho a certeza de que uma parte de ti também gosta. Ou, pelo menos, aprendeu a gostar.
Um grande abraço e bom regresso à lida!

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Amigo, tens muita razão (como é, aliás, habitual). Vivamos, sim, quanta(s) vida(s) nos seja dado viver! Abraço carregadinho de cumplicidade & admiração. JJC