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segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (121)


Amizade, etc.

Um conhecido advogado dizia há dias, na televisão, que “os amigos são pessoas de quem gostamos sempre, apesar de as conhecermos bem”.
Não comungo desta noção de cheque em branco oferecido aos amigos. O que há no banco da amizade é um crédito realmente grande, imenso, mas não infinito. Sei muito bem que um amigo é um tesouro, e também eu creio que, em alguma medida, os laços da amizade são mais profundos e delicados que os da família. É costume dizer-se que a família não se escolhe, por existir um vínculo fatal entre nós e os do nosso sangue, ao invés do que se passa com os amigos, que somos lives de escolher, ou que – por actos, palavras e demais coincidências cósmicas - entram em algum momento nas nossas vidas, tornando-se companheiros & cúmplices da nossa circunstância, presumivelmente para sempre.
Ao contrário do que sucede no universo familiar, a que pertencemos de forma mais ou menos involuntária (ou ex-voluntária), a nossa rede de amigos é feita de matéria não exclusivamente emocional ou sentimental. Note-se: não pretendo reduzir o conceito de amizade a um mero contrato, baseado na pura Razão, mas tão-pouco consigo entender o fenómeno como um vínculo gasoso, desprovido de direitos e deveres. De regras. De ética.
Na ética da amizade, creio bem, os amigos não têm de estar obrigatoriamente de acordo uns com os outros. Por outro lado, não têm de conformar-se com tudo o que os amigos fazem, i.e., não têm de engolir passivamente eventuais provocações, ofensas, humilhações. Os amigos de verdade, ainda que tacitamente obrigados à maior compreensão, à maior paciência e à maior tolerância para com os seus amigos, têm também o dever de se zangar perante comportamentos graves e, à luz da própria amizade, perigosos. Falo sobretudo de erros crassos e – pior ainda – conscientes, nomeadamente quando os amigos ignoram os avisos, os conselhos, os pedidos dos amigos.
Mais: os amigos alvo da ira circunstancial dos amigos têm a obrigação, nesse momento, de humildemente se interrogarem sobre os reparos que recebem. Pode aqui suceder que alguns, confundindo orgulho com teimosia, se recusem a admitir quaisquer responsabilidades. E, do outro lado, suceder que se viaje da indignação primária à zanga muitíssimo séria. No pior dos casos, chocarão dois comboios de irredutibilidade, uma triste metáfora para o triste acidente que é uma amizade ser interrompida. 
A idade ensinou-me que ninguém é dono de ninguém, em matéria de amizade ou amor (sendo aquela uma versão talvez menos romântica deste). Aliás, julgo que não possuímos amigos, não detemos amigos – temos amigos, isso sim, no sentido (mui puro) de sermos beneficiários da amizade de alguém e de alguém reciprocamente merecer a nossa estima.
Não se pode magoar gratuitamente um amigo, claro. Mas amizade alguma nos impede de dizer a um amigo que está a ser pouco razoável, se ele estiver a ser pouco razoável. Ou injusto, se ele estiver a ser injusto. Ou a não ser amigo, se ele estiver a não ser amigo.
O pior de tudo é ser mesmo tão terrível a gente zangar-se com um amigo. Lembro-me sempre daquele diálogo (lido sei lá onde, sei lá quando) entre dois espectadores de uma cena de pancadaria na rua, entre vizinhos.
- São conhecidos?
- Pior. São amigos.

Vila Real, 20 de Janeiro de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 26-01-2018. A ilustração (com a personagem Calvin, do grande Bill Watterson) foi colhida, com a devida vénia, em http:www.psicoachbh.com.br.]



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