Bússola do Muito Mar

Endereço para achamento

jjorgecarvalho@hotmail.com

Número de Ondas

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (120)



Lennon no dentista

Life happens while we’re making other plans.” [A vida acontece enquanto estamos a fazer outros planos.] Li a frase de John Lennon pela primeira vez numa revista qualquer, provavelmente antiga, na sala de espera de um dentista, há já muitos anos. Discretamente, recortei o canto da página onde estava esta pérola e guardei-o no bolso da camisa, sobre o coração. É isso que fazemos com todas as revistas, com todos os jornais e, de certo modo, com todos os livros que lemos: guardamos (ainda que de forma menos bárbara e não necessariamente física) o que de mais interessante cada uma destas fontes escritas tenha para nos oferecer.
Esta frase tem sido uma espécie de mote constante para (e sobre) a minha vida. Não, sublinho, como justificação pateta para os problemas do dia-a-dia, porque eu creio firmemente no livre arbítrio e na geral noção de que somos responsáveis por 90% do que nos sucede. Mas também penso que o Acaso (dito, à maneira grega ou fadista, o Destino) tem o seu papel na caminhada de cada indivíduo ou de cada sociedade.
Por exemplo, a coincidência de ter encontrado o mui venerando professor Silveira, de Português, aí pelo 9.º ano de escolaridade, e de ele me ter dito “Se queres ser rico, vai para ciências; se queres seguir a tua vocação, segue a literatura”, e de eu me ter tornado docente também.
Ou a coincidência de, por engano nas filas de matrícula, ter escolhido um curso universitário que não era exactamente o que tinha em mente, e de me ter depois apaixonado pelos programas, pelas matérias e pelos professores, nem sequer equacionando, de aí em diante, qualquer mudança que deles me afastasse.
Ou a coincidência de, numa aula de Cultura Francesa, em horário diferente do habitual, ter conhecido a mulher da minha vida e de ela ter sentido por mim (creio) uma electricidade semelhante, encontro de que resultou, até ver, 35 anos de invulgar felicidade, uma única-Filha-única e uma dívida bancária a 14 anos ainda de ser paga.
Ou a coincidência de um colega de futebol se ter tornado no meu maior Amigo e depois cunhado, e depois – por traiçoeiramente ter morrido de cancro – uma Saudade do tamanho do mundo.
Ou a coincidência de, por razões profissionais, ter saído, há mais de 20 anos, de Coimbra para Trás-os-Montes, acompanhando a esposa, e de aí ter conhecido lugares e gente de revelantíssima importância, que passaram a fazer parte do que sou e sem os quais hoje nem sequer me imagino.
Ou a coincidência de, em menino, ter sido tocado pelos romances e contos de Júlio Dinis, e de uns trinta anos depois ter voltado àquele mistério literário para, como quem cumpre um dever de gratidão, lhe dedicar um doutoramento trabalhoso, extenso e honesto.
Ou a coincidência de ser conterrâneo e Amigo do jornalista-escritor Daniel Abrunheiro, e de este me ter sugerido ao director de O Ribatejo para cronicar, e de por isso estar há 120 crónicas em convívio (perecível) com os seus leitores.
Sim, a vida acontece enquanto andamos a fazer outros planos. Por exemplo, estava eu a terminar este texto e tocou o telefone: era a minha Filha a dar-me boas notícias sobre o seu trabalho e a sua carreira. Logo agora que eu procurava uma frase para, nesta crónica, falar da noção de felicidade-a-haver com que procuro acompanhar cada episódio da vida, por mais desconcertante que ele se me afigure. Deve ser coincidência.

Ribeira de Pena, 14 de Janeiro de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 18 de janeiro de 2018. A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.divadaregina.blogspot.pt.]

Sem comentários: