Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (119)



À brás

1. Conheço e estimo, há muito tempo, o bacalhau à brás. A vida doméstica ensinou-me que, para além do valor gustativo, este prato tem a virtude de se cozinhar de modo maravilhosamente simples: bacalhau desfiado (pré-cozido ou não) e misturado, no tempo certo, com caldo de gemas e claras, batata palha, tudo a desaguar numa frigideira onde o azeite e a cebola estão já em alegre consubstanciação. Eu próprio já sou capaz de o cozinhar, um pouco menos bem do que a minha mulher, mas sem prejuízo grave do paladar.
2. Mais recentemente, soube que o conceito “à brás” é adaptável a outros ingredientes-base, como o frango, o atum, até a pescada. A minha irmã diz que é uma maneira deliciosa de se aproveitar a comida sobrante, fenómeno de poupança que agradará decerto também a Deus e aos ambientalistas (inimigos conspícuos do desperdício).
3. Ao longo da minha existência escrevedora, não poucas vezes pratiquei também esta filosofia à brás, muito particularmente na poesia e na crónica. No fundo, tal acontece quando a escrita parte de uma matéria-prima chamada realidade, bem desfiadinha como tem de ser. Acrescenta-se-lhe, a seu tempo, a calda de gemas e claras do nosso olhar. Neste regaço alegórico, talvez pudéssemos chamar batata palha às palavras que se misturam ao ingrediente básico. O tempero corresponderá talvez a aspectos atinentes ao estilo do cozinheiro – vocabulário, sintaxe, elementos de retórica (atenção: não exagerar nos adjectivos ou nos advérbios).
4. Esta mesma crónica que vos deposito nas mãos era para ser exemplarmente “à brás”. Tinha a intenção de vos oferecer alguns pedacinhos do meu quotidiano mais recente – a minha Mãe perguntando-me a sua própria idade; o Facebook a lembrar-me do aniversário de um Amigo já falecido e convidando-me a celebrar com ele a data festiva; uma ex-aluna, à porta de um hipermercado, chorando (juro) com saudades das nossas aulas de há vinte e tal anos; o Natal visto, a partir de certa idade, como um presépio de ausências; etc.
5. Mas o desvio preambular da crónica, com que gastei talvez demasiados parágrafos, não me deixa espaço senão para uma notinha mais. É preciso, contudo, que olheis para ela à luz dos princípios gastronómicos e de arte poética acima enunciados.
6. No penúltimo dia de 2017, fui com a minha Mãe às compras. Na hora de pagar, brinquei com a moça responsável pela caixa registadora. Apontando para a minha amadíssima progenitora, perguntei: “Acha que ainda posso trocar esta senhora por um modelo mais novo ou já passou o prazo?
A moça, conquanto sorrisse (por saber muito bem que eu brincava), respondeu-me num tom muito grave: “Não se trocam mães. E elas nunca estão fora de prazo.
Eu dei-lhe logo razão, claro, e guardei o episódio para, um dia, lhe acrescentar as gemas e as claras do meu olhar, mais a batata palha das palavras e alguns condimentos à minha escolha. 
Atenção: a realidade à brás não tem de ser servida fria.

Vila Real, 06 de Janeiro de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 11-01-2018. A imagem foi colhida, com a devida vénia, na net.]

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