Bússola do Muito Mar

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quarta-feira, 16 de setembro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (6)

O sentido da urgência



Em Agosto de 1970, na barrinha da praia de Mira, enquanto as mulheres da família dispunham o farnel sobre a mesa e os homens bebiam cerveja ou babavam a testosterona perante a anatomia estival de turistas bronzeadas e ruidosas, eu tentei, pela primeira vez, nadar de costas. Aprendera já a técnica e conseguira, numa aula da primária que tivemos num tanque (amovível) do Loreto, dar três ou quatro braçadas. 
De maneira que, sem aviso, entrei na água doce e pus em prática os preceitos estudados. O sucesso do exercício superou as minhas melhores expectativas (como se costuma dizer): em movimentos sincopados, regulares, competentes, senti o corpo afastar-se da margem, flutuando como um colchão de borracha. Ao fim de alguns minutos, cansado, pude perceber – naquela periclitante horizontalidade que era – a distância considerável a que estava já da minha família. Afligi-me e quis inverter a marcha. Não sabia como fazê-lo, mas já vira o modo como os remadores procediam para conduzir os barcos: suspendiam o movimento dos remos num dos lados e remavam exclusivamente para o lado pretendido. Adoptei essa técnica também, mas esqueci-me de continuar a bater os pés. E dei por mim submerso, à beira de morrer. Desesperado, mexi exageradamente os braços e as pernas. Queria sair dali. Queria salvar-me. Ao sentir o chão sob os meus pés, tentei impulsionar-me até à superfície para poder gritar por socorro. Consegui-o por umas três vezes, mas depois senti-me sem força e resignei-me. Recordo a tristeza que me invadiu, mas também uma sensação superveniente de serenidade absoluta que, à luz da catequese do Bairro do Brinca, talvez fosse a antecâmara do céu (ao invés de mui biológica reacção à falta de oxigénio).
De súbito, uma mão forte devolveu-me a este mundo. Era o meu pai. Alguém me ouvira pedir por socorro e ele, sem hesitar, lançara-se à água para salvar o filho. Adito-vos um pormenor: o meu pai mal sabia nadar, nunca o vi senão dar uns mergulhos fugidios e atabalhoados no mar de Mira. Mas esqueceu-se, ali, das suas insuficiências e foi-me buscar à morte. Alguns familiares disseram, depois, que ele – em terra - vomitou tanta água quanto o filho. 
Lembrei-me deste episódio durante uma conversa sobre os resultados da guerra que, nos últimos tempos, procuraram abrigo na Europa. Bem sei que os recursos dos países são limitados, que há problemas associados à entrada em massa de (i)migrantes, que há leis para observar e respeitar. Bem sei, por outro lado, que os próprios migrantes, ao demandar a Europa, se expõem a sofrimentos e perigos colossais. Mas eu nunca me esqueci daquela vez em que estive, no fundo da barrinha de Mira, à porta do fim. Nem do meu pai que, ignorando a sua própria segurança, foi salvar-me, sem pensar senão na urgência de agir.


Ribeira de Pena, 14 de Setembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 16-09-2015.]

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