Certas palavras certas
Há
uns 35 anos, a direção do Clube de Futebol União de Coimbra informou-me de que
seria uns dos 3 juniores da equipa a subir a sénior. Tratava-se de uma
altíssima distinção e eu andei durante todo aquele dia de Junho numa doce nuvem
de felicidade. Felicidade quase perfeita, devo acrescentar. Porquê “quase”?
Porque um dos meus colegas de equipa, frustrado com a sua exclusão dos eleitos,
vociferou publicamente a indignação: achava que a decisão da direção fora
errada e injusta. Eu, como lhe admirava o talento e sinceramente o estimava
como amigo, quis dar-lhe uma palavra de consolo. Mas a minha atitude pareceu
ofendê-lo (ainda mais): “Não leves a mal, pá, mas tu, em minha opinião, não
passas de um óptimo jogador!” – disse-me ele.
Percebi
que o tom do discurso era zangado, mas não deixei de agradecer (sem ironia) o
adjectivo escolhido para o meu valor futebolístico: “óptimo”. Ele estranhou o
meu agradecimento e reiterou a sua opinião: “Não leves a mal, a sério, mas é o
que eu penso de ti: és apenas um óptimo jogador!”
Voltei
a agradecer-lhe, sorrindo, e ele pareceu ficar fora de si. Rosnou entre dentes:
“Não gozes, pá, estou a falar a sério!”
Até
que alguém lhe perguntou: “O que é que queres dizer com óptimo, pá?” E a explicação veio: mui diversamente de superlativo
absoluto sintético de “bom”, ele via naquele vocábulo um sinónimo de “mais ou
menos”, “razoável”, “sofrível”.
Muito
cedo aprendi o poder que há em saber e dominar as palavras. Em as articular com
a competência e a oportunidade adequadas. Em as conhecer muitas e bem. Em as
ordenar na gramática certa, no ritmo certo, ao serviço da retórica querida e
necessária.
No
romance Mares do Sul, de M. V.
Montálban fala-se de um homem cuja importância se mede objectivamente pelo enorme
volume de léxico que conhecia e utilizava em seu quotidiano. Em A honra perdida de Katharina Blum, de Heinrich
Böll, encontramos o desconforto da protagonista face à corrupção que os seus
depoimentos sofrem: os inspectores policiais trocam-lhe o substantivo
“impertinências” [de certa personagem masculina, que ela abomina] por
“ternuras”, traindo o sentido fundamental do enunciado; ou o adjectivo
“bondosa” [aplicado a certa senhora que a ajudara] por “amável”, reduzindo a
carga afectiva da descrição feita.
A
minha professora primária ensinou-nos, aí por volta de 1972, que o sentido das
palavras poderia, muitas vezes, explicar-se pelo contexto. Um dia, dei com um texto
que falava da melancolia de certa personagem. Eu não conhecia, à época, a
palavra melancolia. O contexto dizia-me que a palavra significava, ali, o mesmo
que tristeza. Mas a docente, nessa ocasião, houve por bem explicar-me que, no
caso da melancolia, se tratava de uma tristeza diferente, outra, misteriosa, que
nem sempre tinha uma causa física, concreta, visível, conhecida.
E eu pude confirmar, nesse dia, que a minha tristeza secreta e profunda
não bem era uma tristeza comum. Era, é melancolia - este eterno Outono em que,
com breves interrupções, sempre vivi.
Ribeira de Pena, 06 de Setembro de 2015.
[Esta crónica foi publicada no jornal O Ribatejo, edição de 10-09-2015.]
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