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Número de Ondas

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (5)

Certas palavras certas

Há uns 35 anos, a direção do Clube de Futebol União de Coimbra informou-me de que seria uns dos 3 juniores da equipa a subir a sénior. Tratava-se de uma altíssima distinção e eu andei durante todo aquele dia de Junho numa doce nuvem de felicidade. Felicidade quase perfeita, devo acrescentar. Porquê “quase”? Porque um dos meus colegas de equipa, frustrado com a sua exclusão dos eleitos, vociferou publicamente a indignação: achava que a decisão da direção fora errada e injusta. Eu, como lhe admirava o talento e sinceramente o estimava como amigo, quis dar-lhe uma palavra de consolo. Mas a minha atitude pareceu ofendê-lo (ainda mais): “Não leves a mal, pá, mas tu, em minha opinião, não passas de um óptimo jogador!” – disse-me ele.
Percebi que o tom do discurso era zangado, mas não deixei de agradecer (sem ironia) o adjectivo escolhido para o meu valor futebolístico: “óptimo”. Ele estranhou o meu agradecimento e reiterou a sua opinião: “Não leves a mal, a sério, mas é o que eu penso de ti: és apenas um óptimo jogador!”
Voltei a agradecer-lhe, sorrindo, e ele pareceu ficar fora de si. Rosnou entre dentes: “Não gozes, pá, estou a falar a sério!”
Até que alguém lhe perguntou: “O que é que queres dizer com óptimo, pá?” E a explicação veio: mui diversamente de superlativo absoluto sintético de “bom”, ele via naquele vocábulo um sinónimo de “mais ou menos”, “razoável”, “sofrível”.
Muito cedo aprendi o poder que há em saber e dominar as palavras. Em as articular com a competência e a oportunidade adequadas. Em as conhecer muitas e bem. Em as ordenar na gramática certa, no ritmo certo, ao serviço da retórica querida e necessária.
No romance Mares do Sul, de M. V. Montálban fala-se de um homem cuja importância se mede objectivamente pelo enorme volume de léxico que conhecia e utilizava em seu quotidiano. Em A honra perdida de Katharina Blum, de Heinrich Böll, encontramos o desconforto da protagonista face à corrupção que os seus depoimentos sofrem: os inspectores policiais trocam-lhe o substantivo “impertinências” [de certa personagem masculina, que ela abomina] por “ternuras”, traindo o sentido fundamental do enunciado; ou o adjectivo “bondosa” [aplicado a certa senhora que a ajudara] por “amável”, reduzindo a carga afectiva da descrição feita.
A minha professora primária ensinou-nos, aí por volta de 1972, que o sentido das palavras poderia, muitas vezes, explicar-se pelo contexto. Um dia, dei com um texto que falava da melancolia de certa personagem. Eu não conhecia, à época, a palavra melancolia. O contexto dizia-me que a palavra significava, ali, o mesmo que tristeza. Mas a docente, nessa ocasião, houve por bem explicar-me que, no caso da melancolia, se tratava de uma tristeza diferente, outra, misteriosa, que nem sempre tinha uma causa física, concreta, visível, conhecida.
E eu pude confirmar, nesse dia, que a minha tristeza secreta e profunda não bem era uma tristeza comum. Era, é melancolia - este eterno Outono em que, com breves interrupções, sempre vivi.

Ribeira de Pena, 06 de Setembro de 2015.
[Esta crónica foi publicada no jornal O Ribatejo, edição de 10-09-2015.]

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