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Número de Ondas

sábado, 4 de fevereiro de 2012

A economia da alegria


Nunca gostei do carnaval. Em miúdo, mascarava-me e fazia-sofria partidas de gosto duvidoso apenas porque se tratava de uma obrigação da tribo. Eu era assim porque os outros eram assim.
O desconforto subiu a patamares de sofrimento quando, já professor, fui obrigado a participar institucionalmente na celebração do carnaval. Para os directores de turma, o suplício multiplicava-se visto que lhes cabia a “motivação dos alunos”, a opção por um “tema”, a organização dos trabalhos preparatórios do desfile. Há uns quinze anos, certa colega de História, de passagem pela vila onde eu trabalhava, teve o topete de se declarar publicamente anti-carnaval; quase toda a gente caiu em cima da pobre e lembrou-lhe, como gravidade, a importância da data para a comunidade educativa. Embora corroborasse do desamor da colega pela fúria carnavalesca, percebi também a pertinência do que outros aduziam sobre o assunto.
Não é fácil conciliar estas posições, concedo. Recordo-me de um desfile, talvez em 1998, em que uma professora (portuguesa, mas durante muitos anos radicada no Brasil) se insurgiu, a meio do corso, contra anónimos alunos ou professores que a borrifavam, à traição, com jactos de água. Um colega mais velho recomendou-lhe que fizesse de conta de que gostava, caso contrário – garantiu – seria “pior”. A cada novo ataque com água ou papelinhos, a pobre docente gritava: “Estou adorando, gente!”

Dito isto, cabe-me reconhecer o facto de haver realmente quem goste do carnaval. Estou há vários anos numa vila (Arco de Baúlhe) em que a grande maioria das pessoas valoriza essa - chamemos-lhe assim - quadra. Aprendi a respeitar a circunstância e, não me mascarando de entusiasta, colaboro, na medida das minhas possibilidades e responsabilidades, com as instruções da Escola. Aqui me separo da posição inflexível do primeiro-ministro, Passos Coelho.
Não posso deixar de sorrir, com melancolia e (confesso) algum desprezo, a esta medida – mais uma – do governo no sentido da “produtividade”. Vários espíritos lúcidos (autarcas, sobretudo) já chamaram a tenção para a importância económica do “feriado” de terça-feira, cujo extermínio significará prejuízos avultados em matéria de restauração, comércio, hotelaria, turismo. Gente moderada, não regulada por razões político-partidárias, explicou à corja neoliberal que até economicamente esta medida representa vistas curtas, crasso erro. Mas o que me afligiu mais, no espectáculo de Passos Coelho a falar sobre o assunto na televisão, foi o ar de homenzinho severo que revelou assegurando que “o país não compreenderia” outra posição que não aquela.
Um presidente de câmara trouxe à reportagem que televi uma lufada de inteligência que o governo faria bem em aproveitar. Disse este senhor que, para além do equívoco económico da medida, havia um perigoso sinal dado pelos governantes: a repressão da alegria do povo.
A mim, que não gosto (pessoalmente) do carnaval, preocupa-me esta eventual falência da alegria em Portugal. Quem olhar para a fisionomia dura e mecânica de Passos Coelho desconfia de que este género de argumento nele não colhe, nunca colherá. Talvez o nosso primeiro-ministro seja simplesmente um triste.

Ribeira de Pena, 04 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (cartaz do carnaval da Mealhada) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.carnavalmealhada.com.]

2 comentários:

Paulo Pinto disse...

Mesmo à luz fria e estéril da busca de uma maior produtividade e equilíbrio orçamental não se compreende muito bem: a hotelaria, a restauração, o comércio em geral, contribuem com muito dinheiro em IVA, IRC, etc., conseguido graças a eventos e ao turismo interno tornado possível, justamente, por épocas festivas e fins de semana prolongados. Muitos o dizem e têm razão: o que isto parece ser é mais um castigo para os trabalhadores, e para os da Função Pública em particular.
Já agora, sugiro que se reconsidere o direito ao descanso semanal. Afinal, muita gente gasta (desperdiça) as suas horas de lazer amarrada à televisão, a dormitar no sofá, a brincar com os putos ou a contemplar inutilmente as ondas na praia. Não lhes chegam os feriados e as férias para isso? Chega-lhes, Passos!

Anónimo disse...

Estamos sintonizados.

Registo essa ideia (sugestão para os senhores neoliberais) de se penalizar a observação do mar. Lembrei-me de meu pai que não compreendia o meu fascínio pela visão demorada (e libertadora) das ondas, mas me respeitava o capricho. Escreveu Sophia:
"Quando morrer voltarei para buscar / Os instantes que não vivi junto do mar."