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Número de Ondas

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Biografia de um ex-poeta


Era uma vez um poeta pobre. (Poeta pobre, numa narrativa portuguesa, é quase redundância, convenhamos.) Muito cedo órfão, ele vivera trinta e poucos anos às custas de uma avó remediada e, durante esse tempo, mais não fizera que contemplar o mundo e escrever versos se lhe apetecesse.
Quando a avó morreu, a necessidade de sobreviver obrigou-o a tomar novo rumo, porque da fome não estão dispensados nem os maiores líricos. Pediu emprego numa série de lojas, empresas, instituições e, para sua surpresa, ninguém pareceu reconhecer-lhe utilidade ou interesse, não obstante a qualidade da sua sintaxe e a variedade do seu vocabulário.
Até que conheceu uma engenheira loira, mulher linda linda que transportava em seus olhos a cor indefinível de certas manhãs primaveris. Era ela a líder dos recursos humanos na poderosa Transportex International e, tendo escutado do homem o pedido de trabalho, levou-o a sério.
Aquela donzela linda linda percebeu os motivos do interlocutor, mediu bem a urgência do seu discurso, tomou até como natural a profissão que ele afirmou exercer até aí: poeta.
- Que género de poeta? – quis saber.
Em resposta, o homem deu-lhe para a mão cerca de quinhentas páginas de versos – dísticos, quadras, quintilhas, sonetos, alguns parágrafos em prosa poética.
Competente, a linda linda dama foi para casa e leu um a um cada texto. A leitura levou uma semana e muito a emocionou a generosidade com que o artista ali tratava da violência da mortalidade, do desamor seguinte ao amor, da injustiça do mundo, da falência da esperança, das saudades de uma perdida meninice.
“Versos contra a passagem do tempo, contra o desconcerto do mundo, contra a imperfeição do universo”, pensou.
E mais pensou:
“E versos que compreendem tão bem a grandeza de cada gesto humano por mínimo que pareça, isto é, versos de lúcida bondade e de, digamos assim, consolação.”
Na segunda-feira seguinte, chamou o homem ao seu gabinete e ofereceu-lhe emprego.
Desde esse dia até hoje, o ex-poeta ficou a trabalhar na área de "apoio ao cliente – secção de reclamações e devoluções".

Arco de Baúlhe, tarde-noite de 02 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (depois editada e trabalhada) foi originalmente colhida, com a devida vénia, em http://www.catteryfernando pessoa.com.]

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