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Número de Ondas

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Claraboia


Recebi uma anunciada prenda no último Natal: o romance Claraboia (o título aparece grafado assim mesmo, sem o acento), de Saramago.
Já há algum tempo que o li, mas não será ainda hoje que enunciarei, de forma organizada e mais rigorosa, a minha avaliação literária.
Debitarei apenas alguns pormenores, com o fito essencial de comentar um aspecto de natureza editorial que me parece interessante.
Recordo que este livro foi escrito na juventude do autor, tendo a sua publicação sido, à época, recusada pelas editoras que conheceram o manuscrito. O nosso Nobel nunca mais quis publicá-lo em vida, embora reconhecesse nele, já, características que viriam a povoar, no futuro, os seus mais consagrados romances.
A acção de Claraboia passa-se num prédio em Lisboa (a ideia não é original, como num outro texto demonstrarei). A prosa é anterior à da linguagem que posteriormente Saramago inventaria - a partir de Levantado do Chão - e não se distingue muito dos neo-realistas (portugueses, brasileiros e outros) que o autor leria nesse tempo. O que já aparece neste livro de saramaguiano é a capacidade de, em cada avulso, anónimo, vulgar cidadão se encontrar, afinal, motivo de atenção narrativa: cada casa do prédio (cada casa do Mundo) tem gente dentro, e dentro da gente - dentro de cada um - há sonhos e dores, fé e frustrações, vida e desespero. Àquele prédio chega a milenar injustiça social de sempre, consubstanciada na desigual distribuição da riqueza (o título configura a ideia de contacto fatal com a luz exterior). Tudo "isto" não é, no romance, uma abstracta filosofia - vê-se, concretiza-se, somatiza-se em cada episódio, em cada um dos rostos humanos de que o prédio se constitui.
Trata-se, enfim, de um romance digno de José Saramago, ao nível, por exemplo, de Terra do Pecado. Para mim, a parte literariamente menos interessante está no último capítulo. Saramago não resiste ao fabrico de um diálogo, genologicamente próximo do drama, em que põe em evidência a dialéctica entre os que defendem uma revolução tranquila, fundada no amor individual de cada ser humano pelo próximo, e os que preferem uma revolução dura, colectiva, talvez brutal, que sem vacilações ou pruridos erguesse uma nova forma de sociedade. O capítulo é muito palavroso, muito axiomático ou dogmático, muito longe do prédio que albergava a verdadeira acção. Por mim, li ali as diferenças (de filosofia, de métodos e de objectivos) entre a oposição católica ao Estado Novo e a oposição comunista.
Mas este diálogo leva-me à observação sobre o que considero uma falha editorial. Na contracapa, aparece um excerto da obra em que um sapateiro (maravilhosa personagem que representa a revolução tranquila, lenta, fundada no supra-dito amor pelos outros) explica ao hóspede (representante da revolução mais radical, violenta se necessário) a sua praxis em matéria de transformação do mundo: sendo sapateiro, cumpriria o seu papel, isto é, faria apenas o que estava ao seu alcance - reparando bem os sapatos, tratando bem as pessoas.
A quem lê a contracapa sem ler o livro, a resposta do sapateiro parecerá bonita, justa, certa. Mas a retórica do livro inclina-se para a aceitação das ideias do enigmático hóspede, sem o que - como se depreende do enunciado romanesco - nada verdadeiramente mudará. O próprio sapateiro é, com a sua paciência e serenidade, um cúmplice da situação, logo, um obstáculo à revolução. A escolha deste excerto é, portanto, do ponto de vista da verdade do romance, traiçoeira.
Sublinho o facto de eu, enquanto leitor, simpatizar mais com a situação do sapateiro. Mas, descontada a liberdade interpretativa que a leitura literária compreende, o que um romance diz é o que um romance diz.
Creio, aliás, que este episódio não aconteceria se a obra fosse publicada antes de Saramago falecer.
Ponto final: Claraboia é um bom, um (repito) digno romance.

Ribeira de Pena, 12 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho

2 comentários:

Anónimo disse...

Esta vida é mesmo um lugar estranho! Apesar de não ser muito dado a prendas natalícias, preferindo ser dado a recebido, e preferindo melhor a dádiva da reunião familiar em volta de natalícia ceia, ofereci-me a mim mesmo, este mesmo livro neste mesmo Natal. Ainda não o li ... encontra-se na fila para saltar para a mesinha de cabeceira. Entretanto, como o primogénito é um ávido e sedento leitor, "impingi-lho" para que o rapaz pudesse sorver alguma seiva neo-realista e conselebrar assim a mesma paixão. Ainda não o li ... mas estou-lhe com umas ganas!!! Pelo curiosidade catraia de lhe passar os olhos pelas letras, fui ficando com real ideia de que o livro deve cumprir a minha vontade. Confesso militante neo-realista, ficaram-me para sempre enternas saudades de reler Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, Carlos de Oliveira, Fernando Namora, Manuel de Fonseca e o também citado Levantado do Chão, de Saramago. Trocou-se a arte pela arte, e ganhou-se a preocupação social e promoção de outros valores mais desfavorecidos.

Abraço

Manuel Vilares

Manuel Vilares

Anónimo disse...

Caro Amigo,

também eu tenho em alto apreço essa literatura capaz de contar, de forma escorreita e nem por isso menos formosa, uma história. Fico à espera das tuas notas sobre Claraboia. Abraço!

JJC