Desculpa lá, Johan
Talvez
fosse, Johan, mais fácil perdoar-te a mortalidade se aquele miúdo coimbrinha de
1971, nos seus magros oito anos e cheio de uma misteriosa devoção pelo futebol,
já não existisse dentro de mim. Isto é, se o coração do petiz em frente à
televisão, ele próprio suado ainda de um jogo épico no campo do Casal Ferrão,
tivesse entretanto crescido também e, para seu descanso, morrido de
inactualidade, talvez fosse, Johan, mais fácil aceitar que eras, afinal, como
os outros tristes da humana raça, seres sujeitos à foice escatológica do
Apagamento.
Mas,
sabes, eu trago comigo, como doença ou tesouro, esse menino de 1971. Dele
conservo os olhos e o olhar cheios de puro enlevo, capaz de um mesmo ah!
(sonoro ou silente) perante a velocidade eólica, o drible vertiginoso, a finta
malandra, a recepção impossível, o passe milimétrico, o remate assombroso, o
golo fatal. Isto é, o espanto que resulta de testemunhar um fenómeno técnico e
estético maior do que supõe (supunha) o nosso entendimento – um indivíduo sendo
simultaneamente parte do colectivo e solista conspícuo: criatura, criador e
criação.
Eu
vi-te, Johan, numa eliminatória da Taça dos Campeões Europeus, jogando como se
fosses de outro tempo. Isto é, interpretando um futebol que, embasbacando
embora, ainda não bem se percebia naquele século em que estávamos. Vi-te, em
1974, fazendo uma chapelada a quarenta metros da baliza alemã, com o
guarda-redes - o gigante Meyer - a esbracejar com o fiscal-de-linha (e o
árbitro deu-lhe razão, era mesmo fora-de-jogo), no Café Lusa Nova houve mesmo uma
risada das grandes e éramos todos da Holanda. Teus, Johan.
Vi-te,
de cara fechada, numa entrevista, a explicar que não ias ao mundial da Argentina,
em 1978, por razões pessoais (e eu, orgulhoso e grato pelo meu 25 de Abril de
há quatro anos, concluí que era por razões de decência democrática e ética).
Disse depois ao Álvaro, amigo do bairro da Relvinha, que com o Cruyff lá, os
argentinos tinham ido à vida.
Vi-te
(ou li-te) explicando aos jornalistas espanhóis, em 1995, que o Luís Figo não
era lento, era – ao contrário – um espantoso jogador e que o Barcelona acertara
em cheio com a sua contratação ao meu Sporting. Vi-te, junto ao banco, durante
um Barça-Atético de Madrid, talvez em 1997, instruindo o Guardiola,
iluminando-lhe o caminho, cometendo-lhe a continuação do futebol total, herança
de Rinus Michels, de ti próprio (e talvez do Brasil de Telê Santana, de 1982).
Eu
era capaz, já te disse, de perdoar-te a mortalidade. Mas tenho comigo, já te
expliquei, este miúdo de 1971, tão para sempre de coração frágil, que não
suporta a triste verdade de haver Fim. E é esse petiz em mim, Johan, que não te
perdoa. Desculpa lá.
Coimbra, 28 de Março de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica
foi publicada no semanário O Ribatejo,
edição de 31-03-2016.]
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