Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sábado, 30 de abril de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (37)

A autoridade dos autores

Milan Kundera (salvo erro, no romance A Imortalidade) fala da angústia que um homem sente perante a possibilidade de, morrendo, não ter mão no seu legado circunstancial: objectos, cartas, documentação vária. Sobretudo, sublinho eu, textos por depurar ou destruir.
A noção de mortalidade convive, a esse nível, com a noção de devir para além do próprio fim. O drama percebe-se melhor, creio, se visto do ângulo de quem tem esse hábito (aliás, essa pulsão) da escrita. A essa gente assusta a simples hipótese de os leitores vindouros tomarem por importante o que foi transitório e, afinal, do ponto de vista do criador, irrelevante. Ou de, perante um borrão literário (um esboço, um rascunho, uma proto-ideia de escrita), se desiludirem com a aparente incipiência do autor falecido.
Não me parece que o maior medo decorra de uma – ainda assim, natural – ilusão de importância que o autor atribua à sua obra. É antes uma questão de dignidade. De auto-respeito, naturalmente, mas em especial de tributo à literatura que quis servir.
Muitos dos nossos autores já mortos indignar-se-iam decerto com as edições póstumas que a gula de famílias e editores fez publicar, ao arrepio provável da vontade escriba.
Eu, que sou a milésima migalha dos meus escritores amados, adquiri recentemente o hábito de deitar para o lixo ou ao fogo alguns textos (antigos ou recentes). São coisas da minha lavra, sim, mas demasiado más – aos meus olhos – para serem lidas. Demasiado más para serem a literatura que eu quis, que eu imaginei em determinada ocasião.
Visível ou invisível, a matéria escrita tem que ver com a noção muito lata de autoridade: somos autores do que mostramos e do que, por opção (exercível enquanto estamos vivos), não deixamos os outros ver.

Ribeira de Pena, 24 de Abril de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho

[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 28-04-2016.]

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