Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

segunda-feira, 1 de março de 2010

A DEPRESSÃO DAS LARANJAS (15)


A Lógica

Há este problema com o tempo do amor: o de o amante (ou amador) não ser capaz de encontrar lógica para o tempo anterior a essa luz vital, a esse rumo certo, dito “o amor”. Ou seja: que outro “eu” era este que agora ama, sem a anunciação de agora, sem o objectivo determinado de agora, sem a energia caminhadora ora chegada?
Antes de Margo, eu andava a espalhar-me vagamente pelos passeios urbanos que, triste, pisava; aturava a inércia das mesas de Café, quieto e mobília como o contexto à volta; desistia de perceber os muros acerca de mim e exageradamente crescendo (silêncio e cimento).
Assim é a idade anterior ao amor: trilhos ínvios do erro provável e indiferente; nebulosa procura de frutos que (pensamos) não existem – invenções portanto do desejo ou da memória grega, literaturas. Errantes, erramos.
O amor, Margo querida, traz a necessidade e a urgência tóxicas do amor. É um círculo venenoso e belo: é preciso, no doravante deveniente, dizermos (todos os dias) as mais formosas frases; estarmos presentes nos preciosos momentos da inauguração dos sonhos; sermos fortes e conspícuos como os heróis antigos.
Margo, Margo: foi possível, depois de me chegares à vida, que a minha pobre mortalidade ganhasse sentido. Que de mim brotasse (como um verso de Cesário despedindo-se da prosa) o exacto reflexo divino que os teus olhos eram. Que nada houvesse no mundo (= Nós) senão a música inteira dos pássaros, poetando sobre as manhãs ou os entardeceres de Paris, de Lodz, de Lisboa. Que nada, amor, perturbasse a cósmica doçura das laranjas crescendo.
Trouxeste-me, ternurinha milenar e universal, a profunda aventura de existir.
E assim recordo a primeira vez que te vi dormir, junto à nudez conjunta que éramos no quarto inicial: serena e perfeita estavas, ó fruto vivo – e tua (apenas tua) era essa pulcritude de deusa!
Mas meu (apenas meu, amor) era o silêncio belo de estares deitada.

Ribeira de Pena, já 01 de Março de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Trata-se do 15.º texto do volume “A Depressão das Laranjas” (Ribeira de Pena, Ed. Casa de Santa Marinha, 1999). A pintura-supra (“Mulher dormindo”) é de Pablo Picasso.]

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