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terça-feira, 23 de março de 2010

A DEPRESSÃO DAS LARANJAS (5 - Parte V)


As Palavras (Parte V)

O velho mágico instruiu a neta no sentido de ali esperar, todas as noites, por novas suas. Pelas imediações da casa, recolheu plantas, frutos, alguma terra; releu antigos manuscritos e ensaiou rezas estranhas; finalmente, visitou o campo onde a mulher e o filho jaziam, enterrados entre malmequeres e couves. Partiu, enfim, após rápido beijo na silenciosa Margo.
Já em Myra, no teritório do terrível Priapyo, arranjou modo de entrar no “Palácio Negro”, assim baptizado pelo medo popular. Ao segundo dia, estava como cozinheiro contratado, então começando a aproveitar a matéria-prima trazida. As ervas, os caldos, os frutos misturados com terra, as rezas – tudo impressionava o pessoal de serviço ao palácio (entre ajudantes, mestres culinários, soldados e simples curiosos). E a verdade é que Priapyo gabava já, em público, esse cozinheiro misterioso, tão em boa hora caído na sua propriedade e ao seu soldo. O mesmo aliás faziam, em uníssono, as oito concubinas que preguiçavam, seminuas, à sua volta, ou os raros nobres que com o poderoso senhor privavam.
À quarta noite, o jantar pareceu provocar um violento sono em Priapyo. Com voz melosa, quase ininteligível, ordenou que os convidados se retirassem e que as mulheres o despissem e deitassem. Assim fizeram as belas escravas (e entre elas talvez a mãe de Margo), inexplicavelmente excitadas na ocasião, após o que saíram e, querendo, se entregaram aos criados, não cuidando de medos ou de decoro, razão pela qual o trovador de serviço chamou “rio torrencial de amores” a essa madrugada.
O patrão do palácio sonhou, nessa noite, com a mais bela mulher jamais vista no mundo: de olhos muito abertos, olhava para o mágico Hodju e louvava-lhe os loiros cabelos, os seios leves, os lábios rebentando de sumo. Quando Hodju se desvestiu do seu manto, Priapyo sentiu-se desfalecer, pois era a nudez inteira e irresistível de Tétis que ali fitava.
Então, o volúvel guerreiro de Myra, sonambulando pelo quarto, pegou numa das chaves que lhe pendiam do colar e com ela se dirigiu a certo cofre de prata. Hodju, nesse entretanto, deitou-se na cama do bandido. Ao regressar, Priapyo fez menção de se atirar sobre a presa, mas um único olhar de recusa, ou adiamento, gelou-o.
Disse então a essa mulher, que só os seus olhos viam, uma frase tão bonita, tão rica de palavras com música dentro, que ao pobre mágico, esquecido da sua pessoa verdadeira e da sua missão real, apeteceu o amor do homem encantado.
Ficou isto a Hodju de primeira lição, sobre o (consabido) perigo que as palavras encerram. Com um estalido de dedos, fez regressar ao mudo sono o senhor do castelo, copiou de memória a poderosa frase ouvida e, extenuado, saiu do palácio, pelas cinco horas da madrugada, ao encontro da neta.

[Continua.]


Coimbra, 23 de Março de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Trata-se do 5.º excerto do 5.º texto de “A Depressão das Laranjas” (Ribeira de Pena, Ed. Casa de Santa Marinha, 1999). A imagem-supra é “Corpo de mulher nua sentada sobre uma nuvem”, de Salvador Dalí.]

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