Bússola do Muito Mar

Endereço para achamento

jjorgecarvalho@hotmail.com

Número de Ondas

sexta-feira, 5 de março de 2010

A DEPRESSÃO DAS LARANJAS (19)


A Música

Eram talvez quatro horas da manhã quando a chuva interrompeu, por instantes, o exercício monótono de si.
Naquela parte da cidade regularmente adormecida, apenas um polícia (em serviço) e um grilo (de folga) notaram a mudança. O polícia saiu do refúgio onde jazia há muito tempo, olhou o relógio, suspirou – e percorreu a rua vigiada com vagar nocturno. O grilo observou, ainda hesitante, o céu – e deu, nem dois minutos depois, em cantar uma qualquer felicidade que a borrasca adiara.
Então, num prédio apalaçado da urbe, fronteiro à canção do grilo, uma luz se acendeu. Se o animal cantador olhasse para lá, veria uma formosa mulher loira, sob o leve linho de uma camisola mais de despir que de vesti-la. E também: que o cabelo da mulher era um torvelinho de anéis; e que os olhos eram talvez estrelas irreverentes que ali haviam decidido ser o céu; e que o corpo era fugidio e apetecível como um peixe virgem; e que a mulher chorava (chuvosamente chorava) no devir da chuva urbana.
Sumário: o grilo cantava sempre; o polícia marchava pelo lajedo e pelo tempo do turno; a mulher chorava. Era tudo a mesma melodia das quatro horas da manhã parisiense.
Até que Margo abriu a janela. Até que as estrelas que os olhos do meu amor eram, como os das aves, deram em brilhar pela rua inteira. Até que as mãos do meu amor tocaram, como gaivotas delicadas, a janela, o cimento exterior do prédio, a própria noite.
O polícia sorriu nesse momento e trauteou a música persistente do grilo.
O grilo acreditou na bonança do céu e continuou o seu ofício cantor.
A mulher inspirou, com força e ternura simultâneas, o oxigénio vindo do chão e reparou no polícia.
O polícia: magro, triste, olhos escuros, cheio dessa resignação infeliz que há nos habitantes repetidos da cidade. Mas (atenção) sorridente agora, e sensível à melodia grílica da noite sem chuva. Mal vigiando a rua.
O polícia reparou na mulher acordada, junto à janela do prédio apalaçado. A mulher parecia, no segundo em que o polícia encontrara o seu loiro olhar, falar com alguém dentro de casa. (Esse alguém, do lugar de onde se conta esta história, não se via, logo, não entra nela.)
Muito antes de o grilo cantador parar de cantar e de, enfim, adormecer, já a mulher e o polícia estavam, ambos, sem remédio, dentro da música. (Mais tarde, confessei-te que a farda era alugada e que, na tua rua, não havia guardas nocturnos.)
Veio, muito depois, a manhã – que era um dia novo.

Ribeira de Pena, já 05 de Março de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Trata-se do 19.º texto do volume “A Depressão das Laranjas” (Ribeira de Pena, Ed. Casa de Santa Marinha, 1999). A pintura-supra é de Picasso (“Mulher chorando com lenço”).]

Sem comentários: