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quinta-feira, 18 de março de 2010

A DEPRESSÃO DAS LARANJAS (5 - Parte I)


As Palavras (Parte 1)


Era uma vez um príncipe solteiro, no reino distante e célebre de Grodjia, a norte de Varsóvia (província de Admavok). O pormenor do celibato é importante para esta história, como adiante se há-de comprovar.
Delfim, o príncipe, amava em segredo, nunca antes confessado, Lada, uma excelente princesa do reino vizinho de Vaclaw. O consórcio, a existir, seria ideal para o realíssimo jovem: havia razões essenciais do coração & também outras, não despiciendas, do foro político-militar.
O problema estava em que, apesar de seu carácter recto e sua índole generosa, o príncipe se achava demasiado feio para sonhar tão alto. A bela Lada era um céu supremamente doce, um sol perfeito, um absoluto mar de luz: olhos, nariz, cabelo, boca, seios, voz, dedos – representavam, em sua harmonia grega, uma acabada obra dos deuses. E Delfim, esse, era menos alto que a maioria dos seus vassalos nobres, religiosos ou plebeus; o nariz, embora não exagerado, tinha um não sei quê de agressivo em seu pontiagudo prolongamento; uma borbulha irremovível jazia, cravada como um cogumelo, pouco acima do sobrolho direito; para cúmulo, quando muito nervoso, gaguejava.
Naquele dia em que a história começa, supra-sinalizado como “Era uma vez”, o príncipe teve um sonho muito triste e acordou com a sensação de, por instantes, haver vislumbrado todo o deserto que o seu futuro provável reservava. Deserto, pois, se há-de chamar à falta que Lada já antecipadamente lhe fazia.
- Pai – disse -, gostava de me, me, me casar com, com, com Lada, a princesa de, de, de Vaclaw.
O velho rei de Grodjia sorriu e considerou, após majestosa pausa:
- Excelente ideia, meu filho. Por que esperas para a pedir em casamento?
Delfim gaguejou, em silêncio, por três minutos de tempo. Após o que decidiu dizer:
- Fal, fal, faltam-me as palavras para me de, de, declarar, meu pai.
O assunto foi, nesse mesmo dia, levado a conselho de ministros. O duque Fernando, responsável pelas ciências e humanidades do reino, sugeriu (ao fim de longa discussão):
- Que se faça, com autorização do Altíssimo Rei, anúncio público de aquisição de palavras preciosas, essas de que nos trazem notícias os magos, os anacoretas e os trovadores, as capazes (segundo dizem) de convencer a mulher mais rara e a mais caprichosa.
- E como pagar essas palavras, decerto caríssimas? – quis saber, desconfiado, o ministro do tesouro, e o rei franziu o real sobrolho.
- Com gado e com terra, pois terra e gado existem, com abundância, em nosso reino – disse o ministro das terras e dos animais, e o rei sorriu.
- Com o ouro que há de sobra no cofre real – disse o ministro do mar, e o rei sorriu de novo.
- Com mulheres – disse o ministro dos caminhos e dos transportes, e o rei deu uma gargalhada feliz.
Assim se fez. Por todo o reino de Grodjia, pelos reinos vizinhos de Vaclaw, de Baltyar e de Myra, arautos anunciaram aquele concurso público para aquisição de palavras preciosas, sublinhando as apetecíveis recompensas oferecidas.

[Continua]


Ribeira de Pena, já 18 de Março de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Trata-se do 1.º excerto do 5.º texto de “A Depressão das Laranjas” (Ribeira de Pena, Ed. Casa de Santa Marinha, 1999). A imagem-supra, beleza pura em versão Nastasia Kinski, foi colhida em “Tess” (1979), filme de Roman Polansky baseado na obra homónima de Thomas Hardy.]

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