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quinta-feira, 11 de março de 2010

Símbolo Pássaro


Disse Woody Allen, pela boca de uma personagem (no filme “Setembro”), que “o universo é inteiramente aleatório e moralmente neutro”. Será mesmo assim?
Há uns cinco anos, uma pessoa do meu conhecimento e da minha estima internou-se, após hesitações e desistências várias, numa instituição para toxicodependentes. Depois de muito tempo de negação, de medo, de cobardia e de descrença, este homem decidiu-se enfim pela possibilidade de cura. Chama-se, a uma coisa destas, libertação ou possibilidade libertação.
Fui buscá-lo ao aeroporto e levei-o ao local onde, nos próximos meses, haveria de tentar o regresso à sua condição inteira de homem, sem vergonha do seu viver. Ele estava feliz. Repetiu, mais do que uma vez, o singelo objectivo da viagem: “A ver se me livro, pá…” Deixei-o à porta da sua nova casa, não sem antes o abraçar e desejar boa sorte. Foi no dia 25 de Abril de 2005.
Aconteceu que, no regresso à cidade, um pássaro voou doidamente contra o vidro frontal do meu carro, morrendo instantaneamente. É comum associar-se à figura (física e poética) da ave a ideia de liberdade. Ora, este pássaro morreu no exercício vertiginoso de seu voo. Há aqui algum paradoxo?
Volto ao segundo paráfrafo. O homem que ousou libertar-se do inferno da dependência vai, por vontade própria, internar-se numa instituição. Isto é, assumiu a condição de quase-recluso, sujeito a regras e a horários restritos. Ele mesmo mo disse, algures entre o aeroporto e lugar nenhum: “Eu sei que isto da Clínica é uma espécie de prisão, mas tem de ser…”
Que tem isto a ver com a história do pássaro? Eis a minha leitura: o voo louco, perigoso, irresponsável do pássaro conduz à tragédia (mais ou menos anunciada) da morte violenta. O voo vital de um homem fugindo das drogas é outro: abdica lucidamente da liberdade sem sentido nem disciplina - para se salvar. Ou seja, a liberdade desregrada da ave louca é falsa porque leva à morte; a prisão aparente do homem internado, essa, é já uma forma de liberdade (a haver).
António Skarmeta, em “O Carteiro de Pablo Neruda”, diz que todo o mundo, toda a paisagem, todos os eventos são sempre metáfora de algo. É só preciso lermos, em cada circunstância, a lição do símbolo. Em cada sinal, à esquina impontual das nossas vidas, há mensagens (explícitas umas, implícitas quase todas). É preciso atenção e humildade, para percebermos e aprendermos as metáforas do mundo; dessa atitude depende a qualidade do que sabemos, sobre os outros e nós.
À maneira dos existencialistas, tenho percebido que o verdadeiro destino não é apenas o somatório de acontecimentos exteriores à nossa vontade. No caminho comovido por onde a minha biografia anda, tenho percebido que os dias têm, ao volante da máquina que nos conduz, os nossos próprios braços, as nossas próprias mãos, os nossos próprios olhos, o nosso próprio coração esclarecido. Sumário: somos nós, amigos, quem decide o essencial do que somos, do que havemos de ser.
Como Allen (supra-citado), também Lennon achava que “Life happens while we’re making other plans” [“A vida acontece enquanto fazemos outros planos”]. Terás alguma razão, John. Mas a nossa vida não é vida (ou não é nossa) se nela não tivermos alguma palavra a dizer.
Já agora: esta história (ainda) não acabou bem. Homens e pássaros levam, por vezes, demasiado tempo a descobrir o sentido essencial dos seus voos. E vão voando, não obstante os avisos repetidos e (im)pacientes, repetidamente mal.

Ribeira de Pena, já 11 de Março de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Uma versão deste texto foi primitivamente publicada no “Ecos de Basto”, em Maio de 2005. Republica-se agora, com leves, mas não despiciendas, alterações. A pintura-supra é de Heinrich Fueger, “Prometeu leva o fogo à Humanidade” (1817), e foi colhida – com a devida vénia - no blogue ornelasnaamazonia.blogspot.com.br.]

2 comentários:

Paulo Pinto disse...

Somos nós que decidimos, sim, mas são tão condicionadas as nossas decisões! Ia mesmo dizer que são «pré-determinadas», mas seria demasiado dogmático. Muitas vezes simplesmente não sabemos decidir de outra forma, ou somos incapazes de pôr em prática as decisões que contrariam as nossas inclinações.
A nossa liberdade não é, acho eu, só limitada de fora pelas circunstâncias ou pela acção dos outros mas também (e mais decisivamente) pelo nosso próprio eu... que pode ser vencido, mas à custa de um elevado preço. Uma situação que para ti é natural ou estimulante pode ser para mim traumatizante. Tive uma amiga que tinha horror a pássaros, outra que sofria sempre que tinha que dizer o seu nome (para ela detestável e humilhante)...
Adorei o teu texto.
A pessoa de quem falas terá sido capaz de manter a sua resolução e de certo modo triunfar sobre si mesma? Acho admirável conseguir isso.
Um abraço.

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Paulo,
obrigado pelo teu comentário. É "isso": o eu pode ser vencido, mas - se for um eu que se preze - tem, pelo menos, de dar luta. Muita luta. Resistir em vez de desistir.
Abraço!
JJC