Bússola do Muito Mar

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sexta-feira, 12 de março de 2010

A DEPRESSÃO DAS LARANJAS (26)


26. O Cansaço

Na dimensão cristalina dos afectos, o maior perigo é o cansaço. As pessoas, sei-o bem, precisam de rotinas, de funcionais ancoradouros do tempo e das mãos, mas igualmente naufragam nessas areias, por distracção e preguiça na maioria das vezes.
Margo, em certa quarta-feira, não apareceu no Café combinado. Ponderei trezentas razões para tal: doença, imprevisto doméstico, carta familiar, incêndio, inundação, esquecimento...
Mas o motivo fora outro: não lhe apetecera.
Era o quarto mês do nosso amor. Sofri a revelação como se de uma punhalada traiçoeira se tratasse. Margo interrogava-me, receosa:
- Era melhor esconder-te a verdade?
Disser-lhe que não. Mas duvidava da minha própria resposta.
Numa outra ocasião, eu telefonei-lhe para casa e pedi-lhe que viesse mais cedo ao meu encontro: chegavam primos de Lisboa e eu devia esperá-los ao entardecer. Margo achou que era uma violência ter de preparar-se à pressa e sugeriu-me, leve, que simplesmente nos não víssemos nesse dia. Nocturno, acedi.
Acontecia-lhe muitas vezes atrasar-se. À quinta ou sexta oportunidade, optou por substituir as justificações por um beijo doce e uma carícia no meu cabelo. Eu amava-a tanto que me esquecia, então, de reclamar.
Certa sexta-feira, tendo o marido viajado para Londres em viagem de negócios (o “Crazy Horse” parisiense internacionalizava-se), tive uma inspiração: partir com Margo para Portugal e aproveitar essa semana e meia de liberdade para o nosso amor. Planeei tudo com minúcia e imaginação. Margo iria oficialmente à Polónia (o que Louis não poderia deixar de entender); a pequena Mimette ficaria em Bezon, a onze quilómetros de Paris, com a avó paterna; o transporte correria por minha conta.
Era apenas necessário aproveitar e partir, nessa mesma sexta-feira, porque o barco fazia a viagem apenas de quatro em quatro dias.
Margo objectou: era ela, na altura, a responsável por uma coreografia nova do palco número um. Nesse dia, ensaiava-se o seu “tema” pela primeira vez.
Eu disse: Mas. E repeti: Mas. E ela pedia-me, Deus meu, que compreendesse...
Pelo que chegou a mim próprio o horrível espectro do cansaço. É essa a experiência mais próxima da morte, pelo menos como eu a vejo.
Diabólica, a memória trouxe-me (em revoadas ressentidas) episódios anteriores, cicatrizes, imperfeições do nosso amor. Paris, velho e doente, parecia abanar-se de tosse antiga e pneumónica, cheio de uma expectoração resignada que apagava canções, jardins, luares, flores.
Durante quase um mês, não nos vimos. Eu embrenhei-me nos livros, nas cartas para Portugal, nas conversas de tertúlia literária e etílica – e passei a dar mais atenção a uma jovem vizinha do andar em frente, cujos azuis olhos se me ofereciam, óbvios, à hora do café da manhã. Talvez esta francesa se chamasse Thérèse.
Fiz, entretanto, reserva de bilhete para Lisboa. Devia partir numa ou duas semanas.
Depois: seriam nove da noite quando a campainha da porta soou. Eu acabara de sair do banho, no devir de uma corrida à volta do boulevard que escandalizava a vizinhança. Em roupão, dirigi-me à porta.
- Margo!
O meu amor deu-me flores, um texto bonito sobre as saudades e um livro. Louis Dietz regressaria a casa dentro, disse-me, de duas horas e ambos deveriam ir, então, buscar a filha (Mimette) a casa da avó Dietz.
Durante o amor feito, refeito, transfeito, prometemo-nos, pela milésima vez, não perder tempo com os irrelevantes pormenores do mundo.
Mas tínhamos (ela e eu) cada vez maior pavor do fim.



Ribeira de Pena, já 12 de Março de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Trata-se do 26.º texto do volume “A Depressão das Laranjas” (Ribeira de Pena, Ed. Casa de Santa Marinha, 1999). A imagem-supra é o cartaz do filme “O Amante de Lady Chatterley” (2006), de Pascale Ferran, com base na obra homónima de D. H. Lawrence.]

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