Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

segunda-feira, 29 de março de 2010

1918-2010


Vi hoje, em Vila Real, uma bela exposição sobre a participação militar dos portugueses na Primeira Grande Guerra. Trata-se de uma estimável iniciativa do Exército Português, que permite, pela via mágica da fotografia, uma viagem ao início do século XX e, com distância burguesa, reflectir sobre aspectos técnicos e humanos à roda de tão imensa realidade histórica.
Impressionou-me, como sempre me acontece com fotos antigas de gente antiga, a imagem de olhos carregados de vida e, então, de futuro. Vi os olhos cheios de mocidade que há naqueles soldadinhos de papel hoje certamente mortos. Vi uma francesa flirtando com um português de farto bigode, na ressaca gloriosa do armistício – enquanto, em segundo plano, um qualquer (outro) soldado, de sorriso trocista, tirava as medidas à fêmea estrangeira. Vi um soldado embarcando para a guerra e a olhar para trás, à procura talvez do último gemido da mãe ou da noiva que ficará por casar. Vi uma velhinha, em terras de França, de olhos perdidos na paisagem da guerra, incompreendendo a casa destruída e o adivinhável ruído dos canhões à volta. Vi um provável graduado afeitando a barba, com cuidados de fidalgo antigo. Vi um soldadinho raso com ar de camponês bragançano a ditar, para um camarada alfabetizado, uma carta que esperaria encontrar a família de boa saúde (pois que ele, graças a Deus, ainda estava vivo).
Visitei a exposição no dia mesmo em que, em Moscovo, duas mulheres se fizeram explodir, numa estação de metro, matando cerca de quarenta inocentes que ali estavam à hora terrorista.
Vivemos, ai de nós, tempos perigosos. Não há novidade nenhuma nisto de alguns lobos, saídos da variegada alcateia que somos, assassinarem semelhantes cobardemente. Mas outrora, nessa anterioridade técnica e tecnológica dos séculos passados, havia um resquício de nobreza presidindo aos conflitos: na trincheira A, estava um partido; na trincheira B, estava o outro. De um lado, um exército; do outro, o inimigo.
Hoje, mata-se de modo traiçoeiro e cego. Deve haver, entre as vítimas moscovitas, um operário dos subúrbios que não sabia nada de religião ou geoestratégia e que fazia planos para ver na televisão, com amigos e vodka, o CSKA contra o Inter. A sua morte é uma estupidez. Morremos nós próprios, com ele, vítimas (como ele) da estupidez.


Vila Real, 29 de Março de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto-supra (ingleses e portugueses, feitos prisioneiros em La Lys - região da Flandres - pelos alemães em 1918) foi colhida na Wikipédia.]

5 comentários:

Nelson disse...

Viva.
A propósito da participação dos portugueses na 1ª Grande Guerra, escreveu José Rodrigues dos Santos um belíssimo romance - "A filha do Capitão"(edição Gradiva).
Fica a sugestão de leitura.
Boa Páscoa.

Abraço
Nelson

Joaquim Jorge Carvalho disse...

ESCREVEU O NELSON BARRADAS:
Viva.
A propósito da participação dos portugueses na 1ª Grande Guerra, escreveu José Rodrigues dos Santos um belíssimo romance - "A filha do Capitão"(edição Gradiva).
Fica a sugestão de leitura.
Boa Páscoa. Abraço. Nelson

A minha resposta:
Caro Nelson,
eu respeito - como sabes - muito o teu gosto pessoal e habituei-me a valorizar as tuas opiniões. Em muitas questões, profissionais e literárias, sou declaradamente cúmplice da tua pessoa.
Divergimos nisto do José Rodrigues dos Santos, um escritorastro que, na minha opinião, não sabe escrever. Não é preconceito, amigo; é conceito. Ao pé dele, até o Sousa Tavares é bom...
(Ce n'est que mon avis, bien sür.)
Obrigado por (me) visitares o Mar. Boa Páscoa & abraço!
JJC

Paulo Pinto disse...

Amigo JJ
Deixa-me discordar de ti a este respeito, concedendo que em literatura a tua avaliação é de certeza muito mais válida do que a minha.
A qualidade ou mestria da escrita não é tudo em si mesma; também a substância do que é escrito, a capacidade de envolver o leitor e outras qualidades contam e muito, a meu ver.
A leitura de «O Codex 632», do Rodrigues dos Santos, foi para mim uma revelação. Fiquei impressionado pela riqueza do conteúdo, em termos de pesquisa que lhe foi necessário fazer, e pela maneira como ele desenvolve a narrativa, que achei simplesmente brilhante e me prendeu da primeira à última página. Foi dos tais livros que li desejando que nunca acabasse e ao mesmo tempo sem conseguir parar de ler. E em termos literários puros, não aceito que possa ser seriamente considerado um livro mal escrito. Contudo, é verdade que outras obras desse autor ficam uns furos abaixo. «A Filha do Capitão» não li. Mas o homem é essencialmente um jornalista, como sabes...
Quanto ao testemunho que nos trazes sobre esses tempos de guerra de outrora em contraste com o anonimato cego do terrorismo, também fico aterrado com as aberrações dos tempos em que vivemos. Já viajei no metro de Moscovo e tenho lá amigos. Andei de autocarro em Londres. Passei na estação de Atocha em Madrid. Vi as torres gémeas da janela de um avião. Mas nunca estive no lugar errado à hora errada. Até hoje. A mesma sorte não tiveram outros, tão inocentes e desprevenidos como eu. Mata-se para o número, não importa quem morre, e para as televisões difundirem a mensagem do terror. Isto é chocante, para dizer o mínimo. Mas não vejo nobreza na guerra, apesar de todo o aprumo militar e das odes patrióticas que todos os povos têm, a não ser talvez em certas heróicas guerras defensivas (a Inglaterra sozinha contra Hitler, os anarquistas e o POUM contra as tropas de Franco, os Atenienses contra os Persas, Nun'Álvares fazendo parar os Castelhanos... ). A 1ª Guerra Mundial foi tudo menos uma guerra heróica. «A oeste nada de novo», lembras-te?
Por toda esta algaraviada já percebeste que entrei de férias!!! Um abraço e boa Páscoa.

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Caro Paulo,
eu tenho - sobre a literatura - a fundamental ideia de que todas as preferências são legítimas. Desculpa-me o (talvez) assomo de fundamentalismo que usei para opinar sobre Rodrigues dos Santos.
Confesso que - dele - só tresli páginas (más páginas); mas li boa parte da "Fúria Divina", uma peça literariamente intragável (em minha opinião), quer do ponto de vista puramente narratológico, quer do ponto de vista da Língua. Também tenho suportado entrevistas dele e com ele cheias de um Ego maiúsculo e injustificável.
Ele, agora que é escritorastro, sente-se autorizado a mandar recados aos críticos e romancistas a sério: diz, por exemplo, que "os leitores não são estúpidos" - insinuando que o seu volume superior de vendas prova a sua qualidade (em detrimento dos coitados que vendem pouco).
Pobre argumento! Levar-nos-ia a "perceber" a superioridade do Quim Barreiros sobre o Rui Veloso, não é? (Razão tinha o O'Neill quando falava dos "best-sellers" como "bestas céleres"!)
Na contemporaneidade do romance português, eu "sou", por exemplo, do Mário de Carvalho, do Saramago, do Rui Zink, do Lobo Antunes.
Mas, Paulo, respeito o teu gosto e não aceito sequer que me imputes qualquer superioridade crítica. Agora, entre gente inteligente e saudável, como decerto concordas, gostos discutem-se!
Viva a literatura!
Abraço & boa Páscoa para toda a tua formosa Família.
JJC

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Paulo, acrescento uma nota sobre a "nobreza" que tu não vislumbras em nenhuma guerra. Eu também não! "Ali", quis dizer que, antes, os grupos ou nações beligerantes, normalmente, conheciam o rosto do inimigo (era essa a "nobreza" - e talvez o termo seja pouco feliz); agora, o inimigo dissimula-se no meio de gente normalíssima, comum, ocupada da sua civil vidinha...
PS: Gostei da tua referência ao Erich Maria Remarque. Não é impunemente que somos coetâneos...