Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

domingo, 14 de março de 2010

A DEPRESSÃO DAS LARANJAS (28)


28. A Nudez

Louis Dietz exigiu à mulher que, em determinado número do palco dois, protagonizasse uma nudez total, ao som de Mozart. Margo não gostava da música escolhida (“Ein Klein Nachtmusik” – Allegro) e, alegando esse motivo, recusou.
O episódio causou uma crise conjugal grave, com mútuas disposições de separação misturadas com ameaças (pouco veladas) de apropriação exclusiva de Mimette, a filha. Roubou-nos também, a ambos, a doce possibilidade da rotina amadora (mãos dadas, conversa, livros, bilhetinhos impacientes). Por fim, Margo acedeu à vontade do esposo, e este (para agradar à fêmea) optou afinal por um trecho de Verdi (retirado de “Aida”).
Foi essa a primeira vez que Margo me disse, no intervalo suado do amor:
- Estou farta de estar nua!
Percebi que não se referia à pele ali vista, ao corpo exposto (em público e em privado). Queixava-se, pobre polaca das estrelas, da frágil natureza que era, da sua insegura condição de ave, da dependência perante o dinheiro, as conveniências civis e sociais, o estatuto de imigrante e de mamã. Dizia-me:
- É só contigo que regresso à simplicidade da minha vida antiga. À Polónia.
E chamava-me, dedilhando-me cútis, tarde, quietude, dentes:
- Minha laranja portuguesa…
Eu nem sei se a merecia. Amava-a tanto, tanto que lhe exigia os mais íntimos sacrifícios, torturando-a por uma palavra a mais ou a menos, um gesto precipitado ou esquecido. Dei até em querer ser dono dos seus silêncios, reclamando a explicação de um olhar vago, uma nuvem triste, um suspiro.
Explicava-lhe, impaciente:
- Quero-te, percebes, inteira, transparente. Não me escondas nada.
E ela aceitava, quase de imediato, urgente a curar-me estes pueris amuos. Pergunto-me se não era esta minha lamentável obsessão outra forma de a despir, contra a sua vontade; de lhe roubar o direito (inalienável) a um certo mistério mínimo que deve pertencer a todos os eus.

Quando Louis Dietz descobriu as minhas cartas, não fui visitado por gorilas da segurança; não fui agredido; não fui objecto de denúncia aos serviços de imigração; não fui sequer impedido de entrar (como habitualmente) no edifício do “Crazy Horse”. Soube, por coristas e barmen, que o empresário e a mulher haviam partido, em viagem prolongada, para Munique; e daí para Viena; e daí para Bruxelas; e daí para Madrid…

Foi assim que Margo deixou a minha vida: subitamente. Como uma luz devinda ardida e morta.
Resisti em Paris por ano e meio e vi, nesse entretanto, a minha vizinha (talvez Thérèse) amancebar-se com um professor de latim, com um vendedor de perfumes e com o carteiro. Enfim, envelhecido pela desesperança, regressei a Portugal e tornei-me co-proprietário de uma livraria lisboeta.
Um dia, li no “France Soir” a notícia da morte de Margo. Mas, olhando a porta da livraria, ao fundo, acreditei que viesses, meu amor, de repente (com flores, um texto bonito sobre saudades, um livro).

O que é o fim?



Ribeira de Pena, já 14 de Março de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Trata-se do 28.º – e penúltimo – texto do volume “A Depressão das Laranjas” (Ribeira de Pena, Ed. Casa de Santa Marinha, 1999). A pintura-supra, “Prima Ballerina”, data de 1878 e é de Edgar Degas (1834-1917). Foi colhida na Wikipédia.]

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