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terça-feira, 2 de março de 2010

A DEPRESSÃO DAS LARANJAS (17)


O Tempo e o Corpo

Houve um certo japonês que, há bastantes anos, deu em admirar fanaticamente Mick Jagger. Viu, por essa razão, os famosos Rolling Stones numerosas vezes, na Europa, na América e na Ásia.
Este japonês, que existiu mesmo (mas cujo nome e demais dados me escapam, à altura da escrita), não se dedicava, contudo, exclusivamente à música: era homem de negócios, aliás brilhante - e, por isso, rico.
Foi em Londres, segundo julgo saber, durante um extraordinário concerto dos Stones em Wembley, que Kiro Awazok (como doravante lhe chamarei) teve a ideia da sua vida – propor ao amado Mick um negócio. E era, esse negócio, o seguinte: pagar de imediato três milhões de dólares ao cantor se este concordasse em, morrendo, legar ao japonês o corpo para cremação. O comprador utilizaria, autorizadamente, as cinzas resultantes para, bem misturadas com centenas de quilos de areia, fabricar “Ampulhetas Jagger” (made in Japan). Achava o asiático visionário que este comércio seria, para além de bela homenagem ao ídolo, um sucesso anunciado.
Embora não exista documentação rigorosa que o ateste, consta que Mick considerou seriamente a proposta. Mas, à terceira leva de missivas trocadas, soube o cantor londrino da morte súbita do japonês. E tudo (ideia, projecto, contrato) se perdeu no fio repetido dos dias devindos.
Sei que em Tóquio vivia, por esta altura, uma velha americana chamada Marge Bones. Amara Dick na década de setenta, num quarto modesto da periferia de Dallas e, na altura, acreditava muito no futuro. O vocalista dos Stones tinha menos cinco anos que essa mulher e, assim mo garantiram, cria ele próprio no cósmico destino dos dois. “Para sempre?”, perguntava um. “Para sempre”, respondia o outro.
Marge Bones ganhou, em 1974, um maravilhoso emprego na U.S. Cotton, onde aliás trabalhava desde 1970: directora de marketing. Significava tal o topo magnífico da carreira, o torrencial salário de chefe, o frémito da liderança e do poder. O lugar era em Tóquio e Mick Jagger ficou, então, de se mudar também para lá.
Entre 1974 e a actualidade há nesta história um brutal hiato de vinte e quatro anos. Esse intervalo não se acariciou sequer de visitas, missivas, promessas, telefonemas. Muito menos de físico contacto. Uma zanga irrelevante (cujo motivo Marge, entretanto, esquecera) interrompeu, nela e no músico, o sumo confluente das vidas, constituindo-se o restante tempo somente da espera mútua de um remorso, um pedido de desculpas, uma palavra.
Vão, o tempo.
Graças a Kiro Awazak, Marge obteve (em leilão pouco concorrido) duas cartas assinadas pelo punho de Mick. Riu-se da ideia do infausto japonês e juntou-as ao farto vinil coleccionado durante três décadas, e às fotos de revistas e jornais, e às cassetes áudio e vídeo, e aos autocolantes juvenis.
Em 1998, a mulher soube de um cancro fulminante em si, diegese derradeira da sua estrada vital. Com rigor de executiva, instruiu um sobrinho americano (professor de Literatura Comparada em Winsconsin) sobre pormenores relativos à fortuna pessoal e ao corpo depois de morto. Últimas vontades.
Por um destes dias, Mick Jagger receberá, via correio internacional, um “relógio de areia”. Não obstante a designação decidida, este aparelho funcionará apenas com as cinzas de Marge Bones, após criteriosa cremação num laboratório especializado de Tóquio.
Como relógio, pouca fiabilidade há-de ter, tão leve é esse produto que escorre no interior do vidro. Mas dirá, sobre o tempo, tudo quanto Marge gostaria de ter dito ao seu amor de sempre.
E nunca, como então, uma metáfora sobre o tema terá sido tão verdadeira e rigorosa quanto esta: o teu corpo, o meu tempo; o teu tempo, o meu corpo.

Ribeira de Pena, já 3 de Março de 2009.
Joaquim Jorge Carvalho
[Trata-se do 17.º texto do volume “A Depressão das Laranjas” (Ribeira de Pena, Ed. Casa de Santa Marinha, 1999). A imagem-supra, colhida na Wikipédia, é de Mick Jagger num espectáculo em Itália (2003). Ainda duas notas: 1ª.) a história do japonês nasceu de uma conversa com o Fernando Abrunheiro, irmão do Daniel; 2ª.) o romance entre Marge Bones e Mick Jagger é invenção, claro, mas gosto de pensar no relato como factos verdadeiros.]

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