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segunda-feira, 22 de março de 2010

A DEPRESSÃO DAS LARANJAS (5 - Parte IV)


As Palavras (Parte IV)

Feitas as apresentações, explicou o príncipe o motivo da visita e, curvando-se retoricamente perante o ancião, pediu-lhe auxílio. O velho não queria sair dali por muitas razões; a maior de todas era Margo, a neta. Tratava-se da única filha de seu filho Cretz, morto há muitos anos por assaltantes de vindos de Myra.
- E a mãe? – quis saber Delfim.
- Eu estava, então, a cinquenta quilómetros de casa. Segundo pude perceber pelos gestos da menina a sua mãe foi com o chefe dos assaltantes.
- Rap, rap, raptada? – perguntou o príncipe.
- Não – respondeu o velho.
- Por li, li, livre vontade? – espantou-se o príncipe.
O velho sorriu, com óbvio ódio:
- Sim, por vontade própria, mas não exactamente livre. Por paixão! Algo nele a encantou perdidamente: talvez palavras…
Delfim agitou-se:
- E sa, sa, sabes quem era esse ho, ho, homem?
- Julgo saber. Priapyo…
O príncipe não conseguiu impedir-se um grito. Explicou, de novo, a sua própria tragédia, comungou da raiva do velho – e acabou por propor-lhe um acordo de almas: ajudaria de bom grado à subsistência da neta, agora e depois da morte, um dia, do mágico. Assim este oferecesse os seus serviços ao reino de Grodjia.
O velho reflectiu por instantes. Após o que aceitou, dizendo:
- Notai que a empresa é difícil e requer paciência e cuidado, pois o inimigo é poderoso. As palavras preciosas serão, se tudo correr bem, recuperadas pouco a pouco. À medida que eu as souber, escrevê-las-ei numa casca de carvalho e enviá-las-ei por minha neta. Ela ficará aqui a viver durante o tempo necessário. Vós, por conveniência, devereis alojar-vos em estalagem próxima. E prometei-me que, em caso de morte minha, a tratareis como a mais preciosa das criaturas.
- Descansa. Assim será, sob mi, mi, minha palavra de, de, de honra – garantiu o príncipe. E acrescentou: - Mas tu não hás-de mo, mo, morrer.
- Não estou certo disso. Como já percebeste, para obrigar Priapyo a gastar as palavras que roubou, vou seduzi-lo. Em vez do meu corpo de homem velho, o vil verá a donzela mais formosa que algum dia pudera conhecer. Certamente usará algumas das palavras preciosas de modo a tentar conquistar-me. O problema está em que, com as palavras, o feitiço pode voltar-se contra o feiticeiro.
- Co, co, como?
- Posso não resistir aos encantos das palavras e deixar-me possuir pelo homem que as diz. Nesse caso, por razões do feitiço e da vergonha, morrerei imediatamente.
[Continua.]

Coimbra, já 22 de Março de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Trata-se do 4.º excerto do 5.º texto de “A Depressão das Laranjas” (Ribeira de Pena, Ed. Casa de Santa Marinha, 1999). A pintura-supra, “The Alchimist”, é do inglês Joseph Wright (1734-1797) e foi colhida na Wikipédia.]

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