Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

História (quase jornalística) de amor


1.
Não desfez a barba por falta de tempo. A mulher não apreciava esse desleixo; dizia-lhe sempre que assim parecia um bandido, que ficava mais velho e mais feio, e fazia beicinho. Mas era já muito tarde, a manhã quase despontava; daí a minutos ouviria a buzina da carrinha, conduzida pelo António, e às oito e meia deveria já estar na labuta diária da Efacec.
Engoliu o naco de pão que sobrara do dia anterior e meteu à boca uma meia caneca de café amargo, limpou os beiços com as costas da mão e, enfim, como fazia sempre, foi ao quarto despedir-se dela. A Luísa estava talvez acordada, enrolada na filhota, e como de costume ignorou a saudação esponsal.
O António não veio, nesse dia. Quem vinha a conduzir era o Vieira Um-Dia, ex-pescador, que coxeava devido a um acidente sofrido na tropa e que devia a alcunha ao hábito conhecido de, a cada momento, suspirar e anunciar emigrações: “Um dia, ponho-me a andar daqui para fora…”
-O Tónio? – perguntou Manuel.
- Não pôde vir. Parece que tem de ir ao Porto tratar de assuntos…
- É estranho. Ainda ontem aqui esteve em minha casa, à noite, e não me disse nada.
Entrou na viatura e, sem cerimónia, ligou o rádio. Era o luxo de todas as manhãs: o encosto confortável do banco da frente, o nevoeiro bonito do caminho para o trabalho, o baloiço viajante, a música, a meteorologia e a voz serena do locutor. Nessa manhã de Março de 1972, fazia frio em todo o país; em África, a guerra ia sendo ganha; Eusébio estava lesionado; Madalena Iglésias preparava um novo disco.
À chegada ao parque de estacionamento da empresa, o Vieira disse:
- Um dia destes, vais ver, é de vez!
- Pões-te a andar daqui para fora? – perguntou Manuel.
Vieira Um-Dia percebeu a troça nos arredores da pergunta. Encolheu os ombros:
- Tu vais ver.
O barulho das máquinas e das vozes interrompeu-lhes um possível diálogo sobre sonhos e limites. Manuel apagou o cigarro e sacou do bolso direito um velho par de luvas.
- Até logo, Vieira.
- Até logo – resmungou o coxo, ainda amuado.
Quando, pelas sete da tarde, regressou a casa, Manuel encontrou, em vez da mulher e da filha (e do jantar), um bilhete, escrito no rótulo do detergente Omo:
“A menina está em casa da senhora Adília.
Desculpa, mas a gente não manda no coração. Luísa”

2.
Não percebera bem, a princípio, toda a dimensão da tragédia que se abatera sobre si. Como ébrio, recebera da vizinha, a viúva Adília, a pequena de dois anos que Luísa ali deixara; recebera igualmente o suspiro piedoso da velha, algumas meias sugestões de desconfiança antiga, a mão maternal sobre o ombro.
- Obrigado, Ti’ Adília.
Ninguém em Leça do Balio o vira chorar. Foi trabalhar para a Cuf Portuense - para fugir, dentro do possível, à pena venenosa dos camaradas. Livrou à tropa (com uma cunha, dizia-se, do patrão). Sobreviveu. Todos os dias, muito cedo, ia até casa da irmã, e aí deixava a filha, em silêncio, até às seis e meia da tarde, que era quando voltava do trabalho. Soube, sem nunca perguntar fosse o que fosse, da partida da Luísa e do António para Lisboa, do salão de cabeleireira que a mulher abrira, já depois do 25 de Abril, na zona de Belém, e do sucesso económico do António (na área da restauração).
Não mais quis saber de mulheres na sua vida, tirando um ou outro momento de fraqueza homeostática que curava, com uma centena de escudos, em bares manhosos de Matosinhos ou, mais raramente ainda, no Porto. A sua vida passou a chamar-se Clara, a filha. Era com ela que passava quase todos os momentos, e havia mães que suspiravam, impressionadas, à visão daquele homem passeando pelo porto de Leixões, de mãos dadas com a petiza, comendo gelados ou castanhas, num aconchego de amor tão raro.
A mulher do Vieira Um-Dia, farta do álcool e da violência do esposo, gritara-lhe, algumas vezes:
- É corno, é corno, mas tem uma vida bonita e é um pai como deve ser!
Ao princípio, estas ousadias custavam-lhe uns encontrões ou uns olhos negros, mas com o tempo o sonhador tornara-se um farrapo triste e passivo, que passava as tardes no Café da rua, a olhar cegamente para o mar. Certo dia, deu mesmo em vomitar sangue e, pouco depois do internamento no Hospital S. João, morreu de cirrose. Manuel, a pedido da viúva, tomou conta dos órfãos naquela tarde de terça-feira em que o funeral se fez.
Clara, já com dez anos, teve muita pena dos dois miúdos (ambos muito pequeninos, ainda).
- Já viste, pai? Ficarem assim órfãos…
E foi nessa ocasião que, como Einstein, o operário da cervejeira percebeu que tudo é relativo.

3.
Em 1982, durante a greve, toda a freguesia de Leça do Balio viu, na RTP, a cara sorridente de Manuel, porta-voz da comissão de trabalhadores, manifestando a confiança nas negociações com o patronato e referindo-se à Europa com estranha ironia. O Chico do Café, de olhos muito vivos, recordou a quem o quis ouvir que aquele homem tinha a quem sair:
- O pai dele, na Fábrica de Conservas, foi preso por andar à pancada com o encarregado…
Mas esse foi também o dia em que, pela voz da Madalena, filha da falecida Adília, soube da doença súbita de Clara, durante uma aula de Francês. No Hospital, estava a directora de turma da pequena, que lhe deu conta do desmaio, da preocupação da Escola, da ambulância.
A insuficiência renal, disseram-lhe, tinha remédio, mas não se tratava de empresa fácil: era preciso um transplante. Toda a família mais chegada fez exames, à procura de órgãos compatíveis, mas em vão. O médico garantiu-lhe que a Clarinha estava nos primeiros lugares de uma lista nacional:
- Assim que haja um rim disponível, chamam-na, senhor Manuel.
O tempo, contudo, passava. Clara engordara muito devido aos medicamentos e, por indicação clínica, deixara de frequentar a Escola. Manuel trazia-lhe doces que ela agradecia sem comer; contava-lhe episódios do trabalho para a fazer rir; dizia-lhe que em breve o Hospital telefonaria (e, por dentro, sentia-se ridículo como o pobre Vieira de outrora).
A filha sofria muito com a febre e o seu juvenil estômago não suportava já os antipiréticos. Certa noite, muito cansado e sem fé, ele não pôde impedir que uma lágrima se misturasse ao chá de cidreira. Talvez fosse esta mistura a causadora de uma ideia tão improvável como aquela que Clara exprimiu, baixinho, no suor seguinte à infusão tomada:
- Será que a minha mãe não é compatível?

4.
Para um homem nascido em Leça do Balio, não é simples ir a vizinhos perguntar pormenores sobre a vida da mulher que fugiu de casa, ou geografias sobre o ex-amigo que a levou. Não é simples ir a um restaurante chique, num lugar distante como Alverca (perto de Lisboa), e pedir autorização a António para falar com Luísa. Não é simples ficar, por horas, à espera que a cabeleireira mais frequentada de Belém termine o seu dia de lucro e, enfim, se disponha a ouvir uma narrativa confusa de nefrologia e de desespero.
Mas foi essa, então, a biografia de um homem chamado Manuel, a quem ninguém jamais viu chorar ou lamentar-se. Na foz deste rio de peripécias, aconteceu que Luísa se dispôs a fazer análises e se descobriu que era dadora compatível.
O problema foi que António se opôs: temia consequências na saúde da companheira, problemas na delicada operação, talvez até uma perigosa reaproximação ao pai de Clara. Muito dividida, carregada de temores e de remorsos, a mulher pediu tempo para pensar.
Manuel, tão ocupado a pensar na filha, não teve sequer ânimo para insistir mais e voltou a casa, mais baço do que há doze anos.
Passaram meses. Numa quarta-feira de Março, que aniversariava aquela espécie de viuvez do pai, Clara ouviu o telefone e despertou do sono febril onde jazia. Manuel dormia, também, anestesiado em vinho. Foi a pequena a atender a chamada interurbana que termina esta história surpreendentemente feliz:
- Diz ao teu pai que pode contar comigo – afirmou, tremendo, uma voz de mulher.

FIM
[Ilustração-supra: Pintura de Pierre-Auguste Renoir (1841-1919)]

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