Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

domingo, 21 de fevereiro de 2010

A DEPRESSÃO DAS LARANJAS (7)


A Laranja

Duas semanas antes de, pela primeira vez, possuir o corpo amadíssimo de Margo Boniek, eu desembarcava em Alcântara, na luminosa manhã de um Novembro portuguesinho. Não havia ninguém à minha espera; havia, sim, a anónima multidão do cais, os passos desencontrados de homens e mulheres com pressa viajante.
Pouco me impressionou a vozearia lusitana, as colinas pátrias, a pobreza bela da mendiga de treze anos, os cães farejando ossos ou fêmeas. Havia, em mim, então, a ave polaca que dançava em França. Como um cavalo, já o adivinhais, o meu amor sitiava-me o olhar e crescia por dentro do próprio oxigénio, alimentando-me os pulmões, os gestos, o movimento cidadão.
Vim a Portugal por questões de heranças: morrera-me a tia Rosário, espécie de mãe dos meus cinco anos, deixando-me (como a um filho) os livros, a casa e um terreno periférico à capital. Fora necessário apor a minha assinatura em documentos rigorosos, reconhecê-la em sede notarial, patrocinar a publicação de editais, receber advogados e firmas de comércio, responder civilmente a familiares despeitados…
Ao todo, sofri as agruras das saudades durante nove dias. Escrevi a Margo, entretanto, três cartas – e dela recebi uma única, aliás curta, escrito no verso de um roteiro camarário (que anunciava, na casca da missiva, certa feira do livro no “quartier latin”). Li essa cartinha milhares de vezes, segundo creio, desde as sete da noite até à incerta hora da madrugada em que adormeci. E, no sonho que sobreveio, reli, tornei a reler, tantíssimas vezes, as suas palavras, aquela gramática irregular com perfume imigrante, o odor francês das suas mãos nervosas – e era (acreditai) já da sua própria boca que, no meu sonho, saíam as mais ingénuas juras de amor. Oh minha boneca polaca, com vestido verde por dentro do coração!
Havia uma última nota na epístola de Margo, subitamente redigida, como uma luz raiando do caroço da escrita feita, ali perto do “Pont Neuf” (que é muito antigo), mirando os barcos de uma qualquer camioneta perigosa que se avizinhava: pedias-me, meu amor, laranjas do meu país. Souberas, em conversa de camarim, que Portugal era terra de muito sol.
Eu levei, pois, no meu regresso, uma laranja para oferecer. Era uma laranja luzidia, esbelta, queridamente doce. A tinta, sobre aquela superfície esférica, escrevi: “Para a Margo devorar.» Sorriria essa deusa polaca decerto se algum dia lesse a inscrição, bem o sei. Mas o mar do regresso esteve alteroso, o meu pobre estômago burguês soçobrou demasiadas vezes, tive a terrível febre dos navegantes, e não fui capaz de comer durante dois dias e meio. No minuto seguinte à minha ressurreição, descobri-me sozinho, dentro do camarote, sem forças para gritar por água e alimento urgentes. Ao meu lado direito, serena e sorridente, estava apenas a laranja para o meu amor.
De modo que matei a fome e a sede próprias com esse fruto soberano. A Margo, em vez da laranja pedida, levei-lhe um anel comprado na baixa lisboeta, à tardinha do dia em que chegara a Portugal. Achara-o uma prenda inteligente: representava, no aquém do ouro exterior, a circularidade do meu desejo à volta de si, saudades portanto sem princípio nem fim, aliança de nós.
- Et l’orange? – perguntaste, ainda eu não tivera tempo de te soltar a blusa, de te sentir a pele de lençol limpo, de te segredar a minha paixão e o meu suor.
Percorrias, no exacto segundo aqui narrado, com teu doce olhar de ave (talvez desconsolada), o anel posto e o ouro circular do símbolo. Eu prosseguia a insana tarefa de medir-te, beijo a beijo, dedo a dedo, instante a instante. Até dizer-te, enfim, quase sem fôlego, eventualmente sorrindo:
- L’orange? L’orange, c’est moi.

Coimbra, já 21 de Fevereiro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Trata-se do 7.º texto do volume “A Depressão das Laranjas” (Ribeira de Pena, Ed. Casa de Santa Marinha, 1999). A imagem que ilustra o texto é uma pintura de Pablo Picasso - “Os Amantes” (1923).]

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